Ensaio Carla Zaccagnini, 05/2004

ensaio_ Wagner Morales - por Carla Zaccagnini

 


Wagner Morales


Escrever sobre a obra de um artista é muito diferente de escrever sobre um trabalho específico ou sobre uma exposição. Claro que, de qualquer forma, parte-se sempre de um conjunto de obras, determinado por um período da produção ou pelas preferências do artista que nos mostra uns trabalhos e esconde outros. Mesmo num texto como este, sobre a produção de Wagner Morales, sempre se fala de um detalhe e nunca se pode afirmar do artista algo que ultrapasse o domínio dos trabalhos a que se refere o escrito. Enquanto vivo, é de se esperar que o artista sempre prepare surpresas, mude de idéia, invente novas questões e novas maneiras de dizer as mesmas coisas.


Talvez seja mais um desses truques simplificadores que nos ajudam a entender tudo, como os que usamos quando chegamos num país a estrear e tentamos compreendê-lo todo de uma vez, procurando ou fabricando equivalências entre os sons da língua indecifrável, os cheiros e sabores da comida, os traços e gestos dos habitantes e as condições climáticas. Como se um dado pudesse ser explicado pelo conjunto dos demais, como se a soma dessas especificidades fosse um número racional inteiro. Talvez seja mais um desses truques, mas o fato é enquanto assistia a fita que o Wagner preparou, com dez de seus vídeos organizados em ordem cronológica crescente, o que procurava era um fio condutor, uma constante. Claro que assisti às imagens e aos sons e me deixei levar por cada história, mas esperava também que cada filme que começava fosse de novo o primeiro e todos os outros.


Qualquer um que o tenha provado concordará que o sabor do sashimi não está em saber que o Japão é uma ilha com pouca terra disponível e muita água em toda a volta. Tampouco se pode dizer que o alto consumo de arroz na terra do sol poente esteja relacionado a uma identificação formal entre esse grão alongado e os olhos ditos puxados dos orientais. Nem a lógica que certamente explica parte dos hábitos alimentares pela localização geográfica contem qualquer resquício do gosto e da textura do peixe cru em fatias milimétricas, nem a livre associação formal é capaz de dar qualquer pista a respeito das características do arroz ou de olhos que não sejam os que identificam essas formas. O que quero dizer é que os vídeos a que este texto fará referência são insubstituíveis, como qualquer prato ou qualquer viagem, e que este texto não pode ser muito mais do que a melhor transcrição das relações, por vezes lógicas, por vezes formais, por vezes de alguma outra ordem, que pude estabelecer entre esses trabalhos e outras coisas que conheço, com todos meus vícios, meus gostos e minhas limitações.


Dito isto, seguem algumas anotações:


Procurava um e encontrei dois elementos que parecem permanentemente em questão nos trabalhos a que assisti. De um lado o uso do som, que assume sempre um papel central como assunto ou como estrutura dos filmes. De outro, as várias maneiras de construir uma narrativa. Claro que ambos são matéria fundamental para o vídeo e o cinema e que qualquer artista que trabalhe com esses meios terá que levá-los em conta. E não se trata somente de prestar uma atenção especial a esses campos. Aqui, o que existe é uma pesquisa, acredito que uma pesquisa sistemática, das funções que o som e a música podem assumir num filme, assim como das estratégias que se pode adotar para contar uma história. Parece-me que cada vídeo se encarrega de por a prova uma possibilidade, uma de cada vez, de testar uma combinação de poucos elementos enfocando um ou outro modo de fazer um filme, sempre usando o mínimo necessário para que esteja completo. Um pouco como o sashimi.


Bloombaalde (versão single chanel), 1999 (em parceria com o Rafael Campos)

A tela se divide em duas para mostrar dois lugares em que ações relacionadas ocorrem. Ou dois momentos. Há um personagem principal e três coadjuvantes, os quatro com as cabeças cobertas por baldes ou baldes em lugar das cabeças. E o desenrolar de um acontecimento. Não há expressões que se vejam. O movimento é escasso e quase improdutivo, marcado pelo som que gera: a batida repetitiva do agogô que quando se interrompe a um lado da tela é recuperada na tela ao lado. O deslocamento do ator principal redunda nas flechas que desenha no chão, riscadas com a vareta do instrumento à medida em que caminha. Os demais personagens esperam à beira de uma estrada. Chega à margem de uma piscina, entra e mergulha. Seu balde flutua sozinho, desvira e vai se enchendo de água. Afunda e sai de nosso campo de visão para aparecer depois, cheio d'água, sendo levantado e empurrado para fora da piscina. O ator sai da água com a cabeça mergulhada entre os ombros, fingindo mal que não a tem. Senta-se, tateia o balde, e o vira sobre o pescoço levantando-se depois. Retoma o ritmo e volta pela estrada de terra, seguindo as flechas ao contrário. A narrativa é circular, volta-se por onde se veio. Nada do que se faz produz ou promete um resultado que escape ao que se fez. Toca-se agogô e resulta um som que condiz com o movimento que se vê. Nada surpreendente acontece e não há disfarces.


Três montes (suíte para voz e maquina de lavar), 2000 (em parceria com o Wagner Malta e o Rafael Campos)

O cenário é uma garagem ou um ateliê, um espaço interno onde ninguém mora, um pouco desarrumado e sujo. O chão está coberto de laranja por um tecido desses que aderem ao corpo, quando estão sobre o corpo. Uma máquina de lavar está no centro desse cômodo. Um homem sem camisa entra por uma porta à esquerda e se arrasta para baixo desse tapete para levantar-se diretamente atrás do eletrodoméstico, formando um dos montes. Começa a cantar e segue cantando enquanto outros dois homens rastejam sob o tecido e aparecem a ambos lados da lavadora. Passam os braços por buracos no tecido e iniciam um batuque a quatro mãos. As dimensões da máquina de lavar mostram-se totalmente adequadas para o uso aqui proposto: o tampo à altura do abdômen, as laterais ao alcance dos braços. A música está feita de poucos elementos, a harmonia do canto e o ritmo da percussão. E o que se vê também é pouco, as três silhuetas mal contornadas e, de novo, os movimentos necessários para fabricar o som. Desaparece primeiro o volume central e do som fica só o batuque. O percussionista da direita faz um movimento que infla o tecido antes de abaixar-se de uma vez e começar seu caminho de volta rumo à porta. Por último é o lado esquerdo que cresce e vai esvaziando-se lentamente até mostrar somente o volume do homem deitado já em direção à saída. Aqui também há personagens sem rosto, um roteiro de poucas ações e uma narrativa que termina como começou. Neste filme, fica ainda mais clara a importância da música que resulta do movimento dos personagens mas que também determina, como projeto, esses movimentos. Como de fato ocorre com todas as atividades que dependem do treino dos gestos, talvez. Ao dar-se por encerrado o vídeo me pergunto se seriam muito diferentes os sons e as atitudes que serviram para armar e desarmar o cenário. Não posso deixar de pensar que os três personagens esticando o tecido para cobrir todo o chão, como se faz com os lençóis para forrar uma cama king-size, e carregando desajeitadamente o peso da máquina de lavar até estar bem no centro devem ter gerado sons e imagens comparáveis às que vemos aqui.


Não há ninguém aqui #1, #2 e #3, 2000-2001

Nessa série de três vídeos a narrativa chega desgastada, é como se as ações tomassem forma em outros lugares, a escondidas. No filme #1, para começar, há uma preparação que antecede as gravações de som e imagem. Wagner colocou um anúncio no jornal, nesses classificados ditos pessoais em que homens descrevem quem pensam que são e pedem que mulheres magras e jovens telefonem para uma secretária eletrônica e mulheres “com peso proporcional” pedem a homens sem vícios nem filhos que mandem carta com foto para uma caixa postal. O som que nos conta a história é o da secretária eletrônica, com todas as mensagens recebidas, por ordem de chegada. E as imagens são de um passeio pela cidade, tomadas de dentro do carro, olhando para dentro do carro ou para a rua. Aparecem algumas mulheres absortas em tarefas que não chegamos a acompanhar, a câmera parece procurar nesses rostos a autora da voz que insiste em telefonar dizendo de novo que é a última vez. Por fim, uma voz feminina familiar avisa “mensagem apagada” e o filme termina.


Não há ninguém aqui #2 tem uma estrutura bastante semelhante, mas esta vez os recados são de amigos que chamam o artista por seu nome e falam de coisas cotidianas, uma festa, um cinema, o ensaio da banda e outras propostas que se pode aceitar ou recusar com mais leveza. Ao contrário das mulheres que se descrevem no filme anterior, aqui um nome ou um apelido garante a identidade e o reconhecimento. A imagem é fixa, sempre de dentro do carro, enfocando diretamente o motorista durante todo o percurso. E parece tratar-se de um caminho conhecido também, repetido, de casa ao trabalho ou o contrário, um caminho de sempre.


O terceiro filme da série é gravado no interior de um apartamento. Um interior muito bem caracterizado, onde os móveis estão confortáveis no lugar que parecem ocupar há muitos anos e os objetos tem cada um a sua posição demarcada sobre os móveis. O corredor, espaço condensado entre duas paredes, e a luz que entra pela fresta de uma porta, muito mais clara que a luz interna, reafirmam a sensação de espaço fechado. Em dois ou três momentos um vulto passa num cômodo que vemos de longe. E, de muito mais longe, vemos a rua pela janela e o segurança do prédio em frente na calçada. Uma voz pergunta “O que você vê aqui é o que vai sair ali no vídeo?” e outra voz diz que sim, convidando-nos a acreditar que o que ele vê é o que nos mostra.


Filme de horror

Também aqui há acontecimentos anteriores ao que vemos, o cenário está todo preparado. Um lago ao fundo e, sobre um chão de terra coberto de folhas secas, uma mangueira transparente de cerca de dez centímetros de diâmetro carrega a água que encerra até a água parada. Pareceria que esse transporte lento e seguro poderia seguir até que se terminasse o suprimento do líquido, mas a música com alguns momentos de leve tensão dá a pista de que esperamos por alguma outra coisa. Muito tempo depois, quando os olhos já se acostumaram ao movimento suave da água, a do lago estremecida pelo vento e a que corre presa na mangueira, e quando nos habituamos à música, ouve-se um primeiro estalido opaco e a mangueira estoura num ponto à direita da tela. Jorra um pouco de água que depois se imagina seguir escorrendo. Inicia-se uma série de tiros que ora acertam o alvo ora o erram fazendo pular as folhas secas do chão e algo da terra. É como se fosse inevitável o caminho da água em direção ao lago onde já se concentra. Enquanto corria nos limites impostos pela mangueira era essa trilha que garantia sua direção. Mas sabemos que o terreno em volta de um lago é sempre ligeiramente inclinado em direção à água, justamente porque é essa condição que faz com que ali se possa formar um lago. E sabemos que a água que escapa da mangueira vai se juntar , no lago, àquela que continua correndo contida.


Ficção científica, 2003

Aqui a narrativa é estruturada pelo som. O som de Solaris (Andrei Tarkovski, 1972) serve de trilha e determina a edição das imagens, seja pela música que sugere um ambiente interno ou externo, natural ou construído; seja pelos diálogos que fazem surgir dois ou mais personagens em determinada situação. Os diálogos, entretanto, são legendados com textos que não correspondem aos do original, criando uma outra história a partir das mesmas entonações, dos mesmos comprimentos de frases, das mesmas vozes e ruídos. A narrativa é instituída pelo texto e pelo som das vozes que, embora incompreensíveis, dão sentimento às palavras escritas e determinam as falsas traduções. O mesmo acontece com as imagens, que são editadas a partir de restos de estúdio para acompanhar a sonoplastia e a música. Começa com os topos de um grupo de coníferas balançando com o vento, depois um rio terroso ocupa toda a tela e a mesma água correndo é então vista de cima. Chove. Voltam as árvores com o vento. Com a qualidade do meu vídeo e da minha TV, as imagens todas tem o mesmo tom sépia, como se todas as cores tivessem se deslocado um pouco mais para perto do marrom, na tabela de cores. Um corredor de hotel ou de prédio com muitos apartamentos por andar e uma escada das que devem usar-se em caso de incêndio vista desde a rua, através da coluna de janelas iluminadas, são alguns dos interiores que aparecem no vídeo. Cenas noturnas mostram prédios que se adivinham pelos retângulos iluminados das janelas, trêmulas. Um garçom de gravata-borboleta, uma pessoa que desce pela escada que vimos antes. É uma colagem. A última cena começa num cômodo que bem poderia estar na casa em que foi feito o filme #3. Acompanhamos a câmera que caminha em direção a uma janela por onde entra bastante luz, suficiente para chegar ao corredor pela fresta de uma porta. Termina com uma aproximação exagerada da cortina de renda feita a máquina. E a frase: a terra é azul. Não há nada a fazer.


Filme de estrada, 2003

Aqui a narrativa que antecede as gravações é parte do conteúdo. O lugar foi escolhido pelo desenho que faz numa imagem de satélite. A estrada está no deslocamento de São Paulo até a praia do Cassino, há uma parte do road movie que não é filmada. O movimento que se mostra, entretanto, é oposto à idéia de uma viagem sem destino certo, em que as paradas são determinadas pela fome e o cansaço dos viajantes. O traveling é fixo, definido pela direção dos trilhos e pela velocidade do vento em relação ao peso do vagão. Esse Filme de estrada é um documentário, a gravação não editada não faz mais que mostrar o que se pode ver ao longo de um trajeto pré-existente que, uma vez escolhido, independe da vontade do usuário ou do cineasta. A narrativa está dada por uma estrutura externa, por uma seqüência de eventos reais que são registrados na ordem em que chegam ao campo de visão. Há uma certa ironia em adotar para um plano tão determinado o nome dessa praia: cassino. O som dos trilhos e a imagem contínua das pedras, ora mais altas ora mais baixas, escondendo e deixando ver o céu e a água, fazem claro esse destino inescapável e a vertigem que essa linha sempre reta, a velocidade constante e a impossibilidade de parar antes do fim sempre trazem.


Faixa escondida, 2003

No início e durante um tempo quase incômodo, a tela é escura, com o quarto superior separado do resto por uma faixa de luz. Ou de luzes, porque a memória nos dá pistas de que se trata de uma cidade vista à distância, entre a escuridão da terra ou do mar e a escuridão do céu. O som das ondas garante que o que vemos abaixo das luzes é água. Quando deciframos esse lugar, porque já nos vimos em praias como essa antes, um flash ilumina a cena e nos mostra um caminho bem ao centro. uma linha vertical, perpendicular à faixa luminosa que demarca o horizonte. Os flashes se repetem, sedimentando a imagem aos poucos, em camadas, o píer que se perde ao longe. Uma pessoa acende um cigarro e brinca com o isqueiro fazendo desenhos de luz diante da câmera. O som das ondas se confunde com o barulho da chuva, imagens diurnas desse mesmo ponto de vista se fundem com o que se adivinha dessa lugar durante a noite, pistas incompletas do lugar e dos acontecimentos que compõem o filme. Uma mão cobre a lente e deixa tudo escuro antes de aparecer finalmente praia, de dia. O aparelho de som na areia parece afirmar que todos os elementos do filme estão claros, evidentes. Agora, depois de tantas informações truncadas, de tantas coisas escondidas. A voz de Elvis Presley, facilmente reconhecível, de repente se torna clara também, límpido o som como a imagem à luz do sol, sem o barulho insistente da chuva ou das ondas. Escuta-se o coro e a voz teatral recitando que o mundo é um palco onde devemos interpretar nosso papel.


EWÁ, 2004

A água de novo. Já tinha pensado nisso em algum outro momento: a água é outra constante nesses vídeos, embora seja uma constante imprevisível. Talvez seja justamente pela maleabilidade do líquido, capaz de assumir múltiplas formas, que ele se presta como uma constante possível. Porque é continuamente diferente e sempre o mesmo. As variáveis em que se encontra a água no mundo parecem ter sido todas gravadas: o mar, a chuva, o rio, o lago, canalizada numa mangueira transparente, ausente mas sugerida na máquina de lavar, na piscina e dentro do balde. Desta vez a água aparece como personagem central. Corre aqui sobre pedras já desgastadas, erodidas por tanto lhe servirem de caminho. Não se trata só da água que vemos passando pelo recorte da corredeira que cabe na tela, mas também de toda a água que passou por ali antes, segundos antes, minutos antes, milênios antes. A água que desenhou os trilhos por onde corre agora esta água que talvez seja em parte, uma pequena parte, a mesma. O som parece de gado, até que um ruído agudo prenuncia uma mudança na ordem dos acontecimentos. A água ocupa toda a tela e desaparece. Numa repetição da cena é que vemos que se trata do contrário da ação real, transformada no filme mostrado ao contrário. Alguma coisa voa de encontro à mão direita de quem segura a câmera. Alguma coisa que essa pessoa na verdade jogou na água antes dela explodir e preencher a tela toda se expandindo num movimento que aqui, invertido, parece de contração.

Associação Cultural Videobrasil. "FF>>Dossier 002>>Wagner Morales". Disponível em: . São Paulo, maio de 2004.

Ensaio Carla Zaccagnini, 11/2003

ensaio_ Wagner Morales_ "Sobre “Cassino, filme de estrada” - por Carla Zaccagnini

 


Sobre “Cassino, filme de estrada” exibido no Centro Cultural São Paulo - CCSP em novembro/dezembro de 2003


O plano é bem traçado e poder-se-ia dizer que deixa pouco espaço para acidentes. Num veículo a vela sobre trilhos a câmera registra seu único percurso possível. A duração é a do trajeto; a velocidade é a que proporciona o vento e permite o atrito das rodas no ferro; as imagens, as que se sucedem; a única narrativa, a do caminho. O áudio é o do ambiente, incluindo a música composta para a trilha, no volume que o microfone consegue captar do aparelho de som. Um travelling perfeito, sem adereços.


O destino foi escolhido a partir de uma imagem de satélite que mostrava, no desenho da costa brasileira, um detalhe que atendia a exigências específicas e arbitrárias. As informações do Guia de Praias confirmaram ser esse o local indicado: o Cassino, mil quatrocentos e cinquenta quilômetros ao sul de São Paulo, é a praia de maior extensão no mundo, com duzentos e doze mil metros lineares. Espaço interessante, esse da praia, faixa de areia que separa o mar da terra – às vezes mais areia, às vezes menos, dependendo das marés. Talvez por ocupar esse lugar de

fronteira o terreno arenoso é pouco estável, grava todas as pegadas com facilidade, mas por pouco tempo. A cada noite a água se ocupa de varrer todos os vestígios do dia anterior.


Mil quatrocentos e cinquenta quilômetros de estrada bem estudada e a velocidade certa. O plano é chegar ao Cassino em dois dias. A praia, aberta ao Atlântico, tem uma sequência de molhes em pedra avançando quatro quilômetros e meio oceano adentro, de maneira a amenizar a violência das ondas e suavizar o caminho das muitas embarcações que atracavam no porto de Rio Grande. Um vagão-veleiro leva os visitantes de uma ponta a outra de cada molhe, da terra ao mar, e os traz de volta. O plano é ligar o aparelho de som, com a trilha determinada pelas imagens aéreas deste lugar e suas descrições ao turista, ao mesmo tempo em que se põe a funcionar a filmadora e se inicia o deslocamento linear, determinado pelo trilho. Um travelling perfeito.


Mil quatrocentos e cinquenta quilômetros de asfalto e o Cassino, mesmo se a viagem for perfeita, devem reservar surpresas. E é possível que o resultado da jornada em nada corresponda às previsões do artista e às descrições deste texto. Em todo caso, um road movie deve aceitar surpresas, ainda que a maior parte da estrada seja percorrida antes e depois da ação, ida e volta.

ZACCAGNINI, Carla. "Sobre “Cassino, filme de estrada”. Centro Cultural São Paulo, novembro de 2003.Disponível em: .