Entrevista Eduardo de Jesus, 02/2007

Como você iniciou sua produção audiovisual? Quais foram os interesses e/ou possibilidades de desenvolvimento artístico que a levaram para o ambiente do audivisual, especificamente do vídeo?

Minha primeira vocação é o cinema. Vim para o vídeo porque a impureza do meio, sua maleabilidade e seu caráter “solitário” me pareciam propícios à invenção de um cinema pessoal, experimental e próximo das condições da escrita. Mais concretamente, me parecia que o vídeo poderia produzir mais cinema do que fazem certos filmes. O vídeo, tal qual o utilizo, é uma espécie de volta às origens: uma captação do real na sua heterogeneidade, livre da necessidade do romanesco e da narrativa linear. Outra coisa de que gosto no vídeo é que ele se situa, de imediato, numa relação paradoxal com relação ao real: presente e ausente, em um tempo de duração que somente a imagem em movimento pode revelar. Nesse sentido, sou fiel ao que André Bazin, famoso crítico de cinema francês, chamava de “a múmia da mudança”, isto é, “a conservação do traço do que a imagem grava e a movimentação do imóvel”. É, sem dúvida, uma concepção melancólica da imagem, mas ela tem o mérito de acreditar em sua potência: a capacidade única de fixar e revelar algo do mundo e do tempo na sua própria impureza. E uma experiência do mundo que podemos transmitir e compartilhar.

O espaço urbano é quase que o protagonista de narrativas como Vue Panoramique (2005), Vue Aérienne (2006) e Napoli Centrale (2002). Além disso, no seu trabalho, é nítida a visão do espaço como possibilidade de abordar questões políticas ou de identidade. Como você desenvolveu essa abordagem ao longo de sua trajetória? Qual a preocupação central?

Minha natureza me impele espontaneamente a uma visão contemplativa das coisas e, em particular, do espaço urbano. Isto pode parecer paradoxal, já que a cidade moderna, com a sua agitação permanente, faz tudo para tornar impossível esse tipo de visão. No entanto, o que me interessa ao filmar cidades é precisamente o que não se deixa ver de imediato, mas o que surge da simples captação e modifica a percepção. O espaço urbano é também uma câmara de eco, que se torna um espaço mental no meu trabalho. Em todos os meus vídeos, o exterior é transformado em um lugar sem topografia, um espaço labiríntico, às vezes no limite da invisibilidade, e visto a partir de um tempo que não é o do presente, mas o de uma permanência dos acontecimentos. É, sem dúvida, a minha maneira de tornar minhas imagens nômades, nos lugares que transformo em espaços de travessia e deslocamento.

Em Vue Aérienne (2006) os diálogos foram retirados de A terceira geração (Die Dritte Generation, 1979), filme de Fassbinder que trata, entre outras questões, da relação entre cinema e vídeo e de organizações políticas e terroristas. Qual a idéia central nessa apropriação?

A sombra do cinema paira muitas vezes sobre minhas imagens. Para mim, fazer imagens é também reativar as imagens filmadas que me marcaram e me formaram, como as de Fassbinber, mas também de Pasolini, Buñuel, Rossellini, Glauber Rocha. Ou seja, de um certo tipo de cinema moderno, às vezes desencantado, mas que definitivamente acredita na potência da imagem. O que me interessava em “refazer” fragmentos da trilha sonora do filme de Fassbinder era poder reencontrar essa confusão moderna que ele colocava em cena. Com a diferença que, em Vue Aérienne, é impossível saber quem fala, o que representa exatamente essa fala. A confusão está no auge. As vozes se tornam fantasmas que assombram uma cidade da qual até o nome ignoramos. É também uma forma de reformular a pergunta sobre o estatuto, no mundo contemporâneo, das imagens, esse fluxo permanente e ambíguo. Concebi esse vídeo como uma espécie de exploração mental que trança, mas também “destrança”, os sinais enviados ao mundo. E é também uma exploração da dificuldade de entender esses sinais e, sobretudo, de compreendê-los.

A aproximação entre o espaço e as identidades, os fluxos migratórios e as questões políticas aparece com muita intensidade em Straight Stories (2006), seu trabalho em produção. Trata-se de uma síntese de preocupações que já aparecem em outros trabalhos ou de uma nova abordagem, mais voltada para o documentário?

Straight Stories não é propriamente um documentário. A diferença essencial deste trabalho em relação aos anteriores é que as vozes que ouvimos são identificadas, pertencem a pessoas singulares, ainda que eu não conte a história das pessoas que concordaram em falar comigo nem mostre seus rostos. É mais uma espécie de viagem fragmentária pelas diferentes experiências de nomadismo. O que me interessa neste trabalho é dar conta de uma experiência individual e singular, mas que não tem valor de exemplo ou referência. O nomadismo é uma das grandes questões contemporâneas e, ao mesmo tempo, uma experiência totalmente arcaica. O homem sempre se deslocou. O homem é nômade, isto é da condição humana. Mas hoje tornou-se mais difícil do que nunca, porque tudo é feito para tornar o deslocamento difícil. É a razão pela qual nunca filmo para falar propriamente das fronteiras no sentido físico do termo. Filmar o mar é filmar um espaço que justamente não tem fronteira, uma paisagem que encarna a não-finitude, a abertura do mundo, o deslocamento sem fim. Da mesma maneira, não filmar os rostos torna possível que a palavra ecoe nesse espaço infinito, de forma que ela viaje. O que mostro realça uma geografia imaginária, que se presta a um deslocamento circular e permanente.

Em alguns de seus trabalhos, som e imagem caminham em direções opostas e os processos de significação parecem se viabilizar dessa tensão-estranhamento. Você concorda? Como trabalha para criar essa relação?

No meu trabalho, o som é realmente desconectado da imagem. Ele parece contar outra coisa, falar de coisas ausentes da imagem, como se elas pertencessem a outra história, a outro tempo. Essa é a razão pela qual ouvimos nos meus vídeos várias línguas e diferentes sotaques - sem dúvida também porque vivo com várias línguas que coabitam em mim. Esses encavalamentos de línguas, de sons, de narrativas potenciais e fragmentárias são minha maneira de abrir e de estender o espaço do vídeo. Nesse sentido, cultivo uma forma de ambigüidade: os lugares são irreconhecíveis, as vozes, não identificadas. E, ao mesmo tempo, isto estende as possibilidades da imagem. Seria a realidade? Uma projeção mental e imaginária? Uma fabulação? Essa desconexão, que chega às vezes à discordância, se transforma para mim em uma dimensão mental da imagem, que a abre para um horizonte mais vasto.

Quais são seus próximos projetos?

É difícil falar de meus futuros projetos, porque, para que nasça o desejo de fazer imagens, preciso fazer uma experiência de nomadismo, tenho de me deslocar num espaço que não me é familiar e que descubro, ao mesmo tempo em que o filmo. No momento, continuo trabalhando sobre Straight Stories. Duas novas partes se seguirão.