Entrevista Teté Martinho, 05/2006

Qual é sua formação?

Minha formação é em comunicação, rádio e TV. Uma coisa importante foi que joguei voleibol profissionalmente dos 13 anos aos 21 anos, mas desde aquela época sabia que queria fazer imagem. No voleibol tinha uma questão muito forte do meu corpo, o contato com minhas limitações físicas - uma dificuldade que retomo no meu trabalho de imagem. Não tinha flexibilidade, era lento. Então, comecei a me interessar não pelo jogo, mas pela vontade de ultrapassar o limite do corpo. Ao mesmo tempo, sabia que não queria fazer aquilo, que queria fazer imagem. Aí, parei de jogar, guardei dinheiro e fiquei um ano na Europa para ver show de rock e arte. 

Você tinha alguma ligação anterior com a arte ou a imagem?

Nenhuma. Só fotografia. Enquadrava bem, sem ter noção. O contato com a arte despertou ainda mais a história da imagem: Francis Bacon, William Turner, William Blake. Coisas que mudam um pouco sua vida. O vídeo estava do meu lado quando precisei de uma ferramenta para me expressar, mas, se não existisse o vídeo, eu provavelmente trabalharia com pintura.

Como chegou ao vídeo?

Quando voltei da viagem, comprei uma câmera VHS com mais três pessoas. Já fazia faculdade de comunicação. Precisava fazer um trabalho, uma imagem, mas não me dava conta do quê. Tinha uma pulsão emocional que explodiu nesses primeiros trabalhos, totalmente inconscientes. Em No time to cry, eu queria gravar um mendigo na rua. Procurando, passei perto da casa da minha avó e pedi para gravá-la. E tinha outra imagem da fábrica da Matarazzo, abandonada, onde ninguém podia entrar. Fui com minha namorada, tinha um buraco no muro, a gente entrou. Daí me vi com essas duas imagens sem saber o que fazer, e na edição virou a história da minha família. Essa maneira inconsciente está até hoje no meu trabalho. Por mais cerebral e conceitual, por mais referência que eu tenha, essa é minha base.

Quando surgiram as questões da narrativa?

Sempre me incomodou no audiovisual a maneira passiva de ver. O telespectador está vendo, mas a visão é em terceira pessoa. Sempre me questionei quem é essa terceira pessoa que vê a cena. Ah, sou eu? Mas então quero entrar nisso, quero participar. A paixão segundo Bruce é uma história narrativa. Depois fiz Jardim Rizzo, em que você tem o ponto de vista de todo mundo em cena. Ele é um pedaço de um projeto maior: a história de uma pessoa que está morrendo afogada e vê a vida passando. Quem visse o vídeo poderia mudar a história. Não tinha tecnologia nem dinheiro, gravei algumas cenas e quebrei. Fiquei um tempo sem fazer nada e, quando voltei, comecei a me interessar não pela história, nem por falar da própria narrativa, mas por criar cenas. Minha última ficção, The bodymen lost in heaven, eram cenas separadas, vivas e independentes, de um mesmo casal, que resultavam da força de uma emoção minha, sobre a qual eu não tinha controle. Mas quando fiz o enquadramento, falei: é isso que quero. Não me interessa mais a história, me interessa essa imagem, que é um quadro. 

Foi assim que você começou a ir para a instalação?

Meu primeiro projeto de instalação surgiu quando estava gravando Bruce: eu vi da rua um apartamento dividido em três janelas. Em cada uma havia uma TV e todas estavam sintonizadas no mesmo canal, mas quando a cena mudava, uma demorava um micro a mais para mudar do que a outra. Eu via as mudanças das tonalidades de luz e essa imagem me levou a pensar na possibilidade de distensão do tempo, em uma instalação que fosse um espaço diferente, onde eu pudesse entrar. Nessa época, não tinha nem internet. Logo depois li uma matéria sobre o MIT (Massachussetts Institute of Technology), sobre a mídia elástica, que era todo esse pensamento. Mas minhas instalações nunca partiram de um conceito teórico, e sim de imagens. Em INSPIREme, de 99, pela primeira vez tratei a imagem como pintura. Usei um plasma 98, na vertical, e a imagem de uma menina respirando. Parece um quadro do Caravaggio. 

Quando o som passou a ter relevância em seu trabalho?

Em 98, fiz uma instalação sobre um poema do Lorca para o SESC, e quis trabalhar com o esmagamento da imagem. Não o esmagamento físico do suporte, mas o esmagamento da imagem. Estudei, fiz desenhos, queria uma imagem holográfica, um feixe de tubos para as pessoas ficarem embaixo, mas não dava. Para manter o conceito, acabei optando por uma solução cenográfica, barata. As pessoas deitavam numa maca no chão, olhavam para cima e tinha uma TV gigante, de tubo, que dois técnicos atrás faziam subir e descer. Só que tinha o som, e foi através do som que eu consegui realizar a parte conceitual do trabalho: produzir a sensação do esmagamento pela imagem na pessoa que estava lá. Foi a primeira vez que eu fiz trilha. 

Como foi seu percurso da instalação para a performance e a pista de dança?

Quando fiz INSPIREme, tinha acabado de ir para a edição não-linear, e isso mudou minha vida. Passei a me interessar pela coisa gráfica do frame. No timeline, tive a oportunidade de ver não mais a imagem no suporte, mas, de certa maneira, livre dele. A edição não-linear te traz o acaso o tempo inteiro, e te dá realmente a possibilidade de tocar a imagem como se fosse um instrumento. Te dá a possibilidade da manipulação, da improvisação, e isso me abriu um universo completamente novo. Aí já não me interessava a construção de uma cena ou de uma imagem, me interessava desconstruir esse movimento. Se estou com uma imagem parada e dou Play, ela se dilui em vinte, trinta filmes, se perde, deixa de ter a força da imagem parada. Falei: como eu recupero isso? Daí começou todo o meu trabalho de performance. E quando fui pra pista de dança, meu horizonte de vida mudou. A primeira vez que entrei em uma rave, em 99, falei: isso aqui é uma instalação sensorial como nenhuma outra que vou conseguir montar. Eu quero vir aqui com imagem e tentar equipará-la espacialmente ao som, que é espacial.

Como seu trabalho de VJ cedeu espaço ao live image?

Quando você consegue realmente ter o domínio da construção da imagem, da ambientação, que é uma situação muito próxima da instalação, você passa a ter o controle também de uma outra potência, a potência da soma do som e da imagem. A pista de dança foi um laboratório pra mim. Foi super bacana a questão da improvisação do ao vivo, a possibilidade da ambientação da imagem, de trabalhar com ela espacialmente, de criar uma narrativa que não é mais dentro do suporte, de propor às pessoas vivenciar o audiovisual de uma nova maneira. Mas chegou uma hora que não me interessava mais estar em uma situação em que eu não tivesse controle absoluto. Por isso parti para os projetos fechados, as composições audiovisuais, nas quais eu controlo o som também, como Vermelho sangue e Desconstruindo Letícia Parente. 

Como chegou ao conceito de células de movimento?

Em Imagem não Imagem, de 2003, uma exposição com curadoria da Christine Mello na Galeria Vermelho, oito artistas partiam de um filme do Arlindo Machado, Complemento nacional, feito com restos de filmes jornalísticos da década de 70. Cada um tinha que ter um pensamento sobre aquilo, criar um trabalho e alimentar um banco de dados. Eu nunca tinha trabalhado com uma imagem documental na minha vida. Na mesma época, um amigo me pediu para gravar uma performance dele. O trabalho era muito fraco mas graficamente as imagens eram interessantes. Comecei a mexer nelas e foi aí que descobri as células de movimento: através da manipulação ao vivo, eu busco a imagem que está por trás daquilo, algo que, em princípio, não estava ali. Pra mim isso abriu um universo. Depois, em Grotesco Sublime MIX (2005), gravei uma oficina do Teatro da Vertigem e, quando fui montar de maneira documental, não virava nada. A sensação que eu tive quando estava vendo a oficina, de tesão, de medo, de nojo, isso não estava na imagem. Nessa época eu estava trabalhando com um software que me abriu um universo muito novo de manipulação, talvez por não estar rodando adequadamente na configuração da minha máquina e ter me obrigado a lidar com essa limitação. Grotesco Sublime MIX é o resultado de uma improvisação feita durante uma única sessão de 16 minutos na qual usei essa ferramenta. Isso me mostrou a potência da performance, do ao vivo, e também que o importante para mim não é a tecnologia, mas o fluxo do pensamento por trás dela. No final, mesmo sem usar o software 100%, tinha conseguido recuperar a força da imagem original que estava lá, pulsando, querendo sair da tela. 

A idéia de resgate da sensação original persiste como mote em sua obra?

Em Retratos in motion: o beijo, fiz pela primeira vez um projeto que partia de um suporte e não de uma imagem. Um belo dia, estava com a Patrícia, minha namorada, dando um beijo, superfeliz e, como meu celular estava no bolso, comecei a tirar foto. Não sabia o que estava tirando, não dava pra ver. Botei as fotos no computador e, com um software de imagem panorâmica, que junta as imagens, fiz vários videozinhos. Num software de manipulação, comecei a tocar a imagem, querendo ir para outros lugares dela, dando movimento. O momento do beijo tinha se esvaído e o trabalho inteiro era a tentativa de recuperá-lo. Tenho um projeto novo, Landscape of My Dreams, no qual proponho exercícios para investigar a relação entre o momento inicial de criação de uma imagem/ação e o resultado disso mediado pela câmera. Em um deles, jogo meu corpo contra uma parede. Quando fui pra parede, me deparei com o limite do corpo físico, esse corpo que não é treinado, que faz a imagem e faz a ação, mas essa ação não é nem a ação que eu tinha imaginado e muito menos o que passa para a imagem captada é o que eu estava sentindo antes de fazer a ação. E, através da manipulação, eu consigo buscar isso e reaver isso e trazer para a tona da imagem. É isso que me interessa.

Como nasceu o Tríptico: estudo para auto-retrato 1, premiado no 15º Videobrasil?

O corpo sempre foi a matéria do meu trabalho, mas demorei até conseguir me colocar corporeamente nele. A partir do momento em que eu gravo a imagem no meu corpo, ele deixa de ser identidade Duva, ele é uma forma. Gravei a imagem deste trabalho um dia em que estava puto, sem idéia, comecei a mexer no computador e vi o que existia por trás do retrato. Isso virou instalação no Paço das Artes e no meio do caminho mandei para o Videobrasil, sem nenhuma expectativa, porque o trabalho era um tríptico. Foi bacana depois de ter feito performances no Festival em 2001 e live image, com Letícia Parente, em 2003, voltar pra Competitiva não com uma coisa em que eu já não acredito, que é mostrar vídeo no single channel, mas com uma performance, exposta como tríptico na Play Gallery. Porque o Auto-retrato é uma performance, por eu ter manipulado essa imagem, e pelo diálogo dos três, um latindo para o outro. 

Você quer desenvolver partituras audiovisuais para suas peças. De onde vem essa necessidade?

A primeira vez que escrevi uma partiturazinha para saber que tipo de coisa fazer durante o decorrer de uma peça foi em Desconstruindo Letícia Parente. A peça audiovisual não só tem de ser ensaiada, como se você fosse músico, como em alguns momentos você tem pedaços de vídeo solo, improvisação. Como vou articular para fazer uma peça dividida em momentos mais narrativos, outros de livre improvisação, outros em que eu possa ser parte de um quarteto? A partitura visual é super importante nos trabalhos de arte, de tecnologia, de novas mídias, porque são trabalhos que se perdem, que são feitos com uma plataforma e um software que daqui a cinco anos não existem. Mas se você tem uma partitura e tem as imagens, você carrega em qualquer software e daqui a 50 anos alguém pode fazer isso. Agora, menos, né? Sem pretensão. Mas ao mesmo tempo eu queria fazer uma coisa muito maior. Queria fazer uma performance no alto Xingu, lá na fronteira da soja com o desmatamento, outra lá no Chuí, mexer com satélite.

Seu trabalho o levou freqüentemente a um embate com a tecnologia disponível. Como se relaciona com esses limites?

Uso a ferramenta que está acessível. Nunca tive interesse de desenvolver tecnologia. Minha formação sempre foi voltada para a criação. Nas vinte instalações que fiz, me deparei o tempo inteiro com esse problema: pra fazer o que queria, tinha de desenvolver tecnologia. E, não tendo acesso à tecnologia, eu simplesmente mantinha o conceito e adaptava a que tinha à mão. Eu poderia sair fora, me dedicar um ano a estudar software, mas, porra, nesse um ano eu faço duas instalações, que, para mim, são mil pensamentos muito mais importantes. Lá fora tem pessoas trabalhando de outra maneira, como Daito Manabe ou Golan Levin. São artistas que programam seus próprios softwares. E fazem trabalhos tão sofisticados, e tão simples, que você não vê mais a tecnologia. Isso sempre me interessou. Recentemente, descobri que meu trabalho não é feito mais pra ser instalação ou live image. Ele é uma imagem. Talvez eu tenha conseguido, nos últimos tempos, fazer exatamente o que vinha buscando desde o começo: uma imagem por si só.