Ensaio Hiroshi Yoshioka, 06/2004

Sobre “The One Made of Light Stuff"

Uma das características mais comoventes do projeto em andamento The one made of light stuff, de Marcia Vaitsman, é o seu envolvimento singular com a questão da pele. A obra usará a imagem da pele humana como uma espécie de interface, através da qual o leitor poderá explorar diferentes narrativas. Mais precisamente, deve-se “tocar” algumas partes da pele visíveis no painel para que a obra possa ser explorada. As cicatrizes na pele dão pistas de onde a pele deve ser tocada.

A imagem da pele em sua obra é bem realista, mas, ao mesmo tempo, é algo do tipo que não se acha no mundo real. A imagem é feita através da junção de fotos de diferentes partes da pele de pessoas diferentes. Assim, de certa forma, trata-se da imagem de uma pele coletiva, que não pertence a uma pessoa específica, nem a uma parte específica de seu corpo. É como se a pele ganhasse vida própria através do processamento da imagem digital. A pele se expande como uma paisagem viva e desconhecida, pela qual é possível se deslocar.

Vamos refletir um pouco sobre a natureza da pele. Ela não é apenas a superfície de nosso corpo. Sua função não é apenas a do envolvimento ou proteção. Se observamos a pele através de um microscópio, nos deparamos com uma paisagem surpreendente, bem diferente da que vemos a olho nu. A pele não é bi-dimensional, mas uma complexa estrutura viva que permite a troca de substâncias, informações e energia entre o corpo e o meio. Assim, de um ponto de vista científico, compreendemos o quão dinâmico é o trabalho da pele. Sua função é paradoxal, pois a pele, simultaneamente, separa e conecta o interior do/ao exterior, o indivíduo do/ao o mundo. Dessa forma, a pele age como uma interface entre o organismo vivo e o mundo ao seu redor.

Apenas quando o organismo morre a pele se transforma em uma mera superfície de cobertura, como a pele artificial de uma boneca. Assim, pode-se dizer que é a função dinâmica da pele como interface, conectando o interior ao exterior, que demarca o limite entre a vida e a morte. É claro que a pele na obra de Márcia não é uma pele real, mas uma imagem processada pelo computador, exibida em uma tela sensível ao toque. Entretanto, não se trata de uma simples superfície. A pele readquire sua vida através da relação interativa entre a obra e o leitor.

Nesse contexto, é de crucial importância que a artista faça referência ao Human Museum in Helsinki (Museu Humano em Helsinque) nessa obra. Geralmente, supomos que os museus guardam objetos que já estão “mortos”, pois foram - sejam eles obras de arte, objetos históricos ou exemplares científicos - removidos de seus contextos originais para serem exibidos em um espaço abstrato, nos mostruários de um museu, colocados exatamente como defuntos em caixões. (Theodor W.Adorno certa vez mencionou em um ensaio* uma associação de tonalidade entre “Museu” e “Mausoléu”). Exatamente porque estão “mortos”, podem ser adquiridos, colecionados, possuídos, estudados e avaliados com segurança. *Theodor W. Adorno, "Valery Proust Museum", in Prismen: Kulturkritik und Gesellschaft, 1955.

Nesse “Museu Humano” imaginário, entretanto, são seres humanos, ao invés de objetos mortos, que são exibidos ao público. São exibidos “objetos” vivos de trinta grupos étnicos diferentes. Pode-se contemplar, por exemplo, uma amazona nativa, ou, talvez, um velho europeu branco, e tocar seu cabelo ou sua pela para sentir sua textura. Essa situação desconstrói a própria idéia do museu, porque não há uma distância “segura” entre o leitor e o texto, o sujeito e o objeto. Então, percebemos que nossa idéia convencional do museu se baseia em uma relação ficcional e assimétrica entre os dois. Um deles (objeto) deve estar morto, e o outro (leitor), vivo - eis a condição necessária para a comum apreciação de objetos em um museu.

Uma das características mais importantes do Museu Humano é que, nele, o público é convidado a tocar os objetos, o que geralmente não ocorre nos museus reais. Normalmente, não se pode nem chegar próximo de uma obra. O “toque” é um tabu em nossa cultura de apreciar objetos de arte em um museu, pois ele pode modificar as obras. Mas o toque nunca é uma ação unilateral. Quando uma pessoa toca algo, ela é ao mesmo tempo tocada. Então, imagine como seria tocar o cabelo de uma pessoa viva em um Museu Humano. Possivelmente, não poderia se convencer de que está tocando um objeto de um museu. Imediatamente, sentiria que também está sendo tocado.

Tocar uma cicatriz, mesmo que seja uma cicatriz visualizada em uma tela, é quase o mesmo que tocar uma cicatriz real, tão poderosa é a imagem das cicatrizes. As cicatrizes são os traços do tempo acumulados em um corpo, e, ao tocar uma cicatriz, pode-se tentar ouvir a voz do corpo. Se você toca uma cicatriz, também é tocado por ela. No momento em que você a toca, a cicatriz também ouve sua voz interior. As inúmeras histórias, memórias e sonhos que podem ser vivenciadas na obra de Márcia Vaitsman parecem sugerir o que essas vozes que vêm do interior do corpo falam. Assim, as cicatrizes não são falhas nos corpos que as pessoas desejam manter perfeitos, mas sinais importantes que nos levam a uma experiência mais profunda com nosso corpo e nossa mente.

A tão chamada interactive media art (arte de mídia interativa) geralmente é tida como nova porque faz uso de mídia digital para a expressão artística. Acredito que isso seja um sério equívoco. A novidade da media art e a novidade da tecnologia não são a mesma coisa. Apesar das tecnologias utilizadas, ela pode ser tão velha quanto uma obra de arte. Se uma obra de media art for compreendida em um mesmo contexto que o da arte convencional, criada como um objeto de arte, exibida em um museu e apreciada como uma obra-prima, por exemplo, não se terá muito a dizer a respeito do caráter novo e singular da media art. A media art interativa só pode ser nova se houver uma tentativa de criar um novo território para a experiência artística.

Agora, mais de uma década após a rápida expansão da internet, da cultura do computador e da explosão da media art no começo dos anos 90, esta parece ser confrontada com a seguinte questão: como podemos criar uma experiência artística realmente nova usando a mídia digital? O que exatamente é novo e singular na media art além da novidade da tecnologia? Talvez essas questões devessem ser mais seriamente levantadas nos países tecnologicamente mais avançados, como os EUA ou o Japão. Acho que essa é uma das razões pelas quais Marcia Vaitsman foi convidada para uma residência artística na primavera de 2004, no Institute of Advanced Media Arts and Sciences (IAMAS), Gifu, uma das principais escolas de media art do Japão. (ref. http://www.iamas.ac.jp/)