Entrevista Denise Mota, 11/2008

Sua obra tem como cenário e temas a vida nos arredores do porto de Bahía Blanca. Como percebeu que esse era o universo que te interessava tratar?

Não tenho certeza que esse universo tenha limites tão definidos, mas, se se trata de tentar traçá-los, teria que começar dizendo que uma coisa é Bahía Blanca, e outra, o seu porto, Ingeniero White. Bahía é uma cidade mediterrânea junto ao mar. O porto lhe pertence, mas ela dá um jeito para que isso permaneça fora do imaginário e da rotina da maioria de seus habitantes. Encontrar o mar em Bahía Blanca é difícil. Você pode passar a vida inteira sem conseguir achá-lo. Quando eu era pequeno, a expressão “ir ao mar” equivalia a visitar praias mais longínquas. Atravessar alguns poucos quarteirões para encontrar o porto de Ingeniero White terminou por ser, anos depois, uma operação consideravelmente mais complexa, da qual esses vídeos, sem dúvida, fazem parte. 
O que a relação, tão particular, entre Bahía e seu porto nega ou obscurece não é somente a possibilidade de contemplar uma paisagem, mas também a de compreender uma história através dela. Bahía Blanca é uma peça-chave dentro da imagem mítica da Argentina como “celeiro do mundo”. Estabelecida em 1828 como um forte militar, Bahía se desenvolveu em estreita relação com a constituição, no país, do que conhecemos hoje como o “modelo agroexportador”. Esse processo incluiu a expulsão e o extermínio dos povos originários dessa terra, por parte do Estado, a instalação de ferrovias, portos e usinas de propriedade de empresas européias (inglesas, em particular), e a chegada de uma imensa massa de migrantes pobres provenientes da Itália, da Espanha ou dos Bálcãs. 
Poderíamos dizer, então, que, através de seu porto, Bahía Blanca se conecta com a história do país e, também, do mundo, e que esse não é um fenômeno próprio da mais ou menos recente “globalização”, mas um processo que se dá há muito tempo. Meu trabalho, como o de outros artistas da cidade, se propõe a rastrear as pegadas dessa história. Como você vê, cada coisa desse pequeno universo possui, ao que parece, uma secreta conexão com lugares distantes e épocas remotas.

Você estudou e trabalhou em Buenos Aires, e depois voltou a Bahía Blanca. De que maneira a experiência portenha mudou ou aprofundou seu olhar sobre a realidade de sua cidade? 

Suponho que viver em Buenos Aires tenha sido o preâmbulo necessário para começar a me interessar por meu próprio lugar de origem. Como você sabe, a relação, muitas vezes conflituosa, entre Buenos Aires e as demais regiões do país – isso que os portenhos chamam de “o interior” – está na vértebra de grande parte da nossa história como nação. Buenos Aires é, ou se apresenta, como a grande cidade e o grande porto do país. Ou seja, por um lado é o centro de referência obrigatório para as outras cidades e, por outro, monopoliza nossa relação com o exterior. É por isso que muitos bahienses se sentem imaginariamente mais próximos desse porto (Buenos Aires) do que do seu próprio. Em suas cabeças, ser “poeta”, “pintor”, “artista” pressupõe abandonar Bahía Blanca para ir à “capital”. Eu tentei a mesma coisa, com o resultado contrário. 

Seus vídeos tratam sempre da relação entre preservação ambiental, desenvolvimento econômico e avanços sociais. Em um deles, um entrevistado diz algo como: “Gostaria que existissem os dois (avanços industriais e a praia), mas isso não seria possível”. É incompatível harmonizar a preservação da riqueza natural e suas possibilidades econômicas?

A pessoa que você menciona é Atilio Miglianelli, que trabalhou a vida inteira como escafandrista na ex-usina General San Martín e faleceu no ano passado. Ele foi testemunha de uma época em que trabalho e a vida podiam andar juntos em Ingeniero White. Era um trabalhador do porto e, ao mesmo tempo, um Mr. Costa Azul; passava horas e horas sob o sol dos balneários da região. Lugares aonde, como ele diz, se podia ir com um lanche ou a garrafa térmica e o chimarrão debaixo do braço, para passar o dia. Por motivos que tomariam muito tempo para explicar, hoje as coisas mudaram, a ponto de ser ridículo, quase impossível, pensar em um trabalhador ferroviário, portuário ou do pólo petroquímico veraneando com a família a poucos metros do lugar onde trabalha.
Talvez Atilio respondesse sua pergunta dizendo que a riqueza nunca é “natural”, que sempre pressupõe a existência de trabalhadores como ele; e que, nesse contexto, não é somente a relação entre produção econômica e ambiente que mudou, e não para melhor, mas também a relação entre capital e trabalho, e, com ela, os recursos de uma comunidade para habitar seu lugar sem destruí-lo. Atilio sente falta dos velhos balneários, mas sente muito mais saudade do tempo livre e da relativa folga econômica que permitia a todo um povo passar o dia nesses lugares. Cada novo empreendimento que se instala hoje em Ingeniero White emprega menos pessoas do que o anterior. No contexto de um futuro trabalhista precário, incerto, as pessoas têm que trabalhar mais. 
Por outro lado, um aspecto desse empobrecimento que não é menor tem a ver com a capacidade dos habitantes de organizar a vida comunitária, que foi dizimada. Atilio trabalhava na usina, mas, ao mesmo tempo, administrava, sem cobrar por isso, a piscina do Club Puerto Comercial, que era enchida semanalmente com água da foz de Bahía Blanca. Ou seja: a relação entre produção econômica e preservação ambiental se dá aqui a partir da relação não resolvida entre produção e distribuição da riqueza, ou entre desenvolvimento econômico e desenvolvimento social, termos que – apesar do que pretende nos convencer o discurso de políticos e empresários – não são necessariamente sinônimos. 

A série El puerto mostra, de maneira muito dinâmica, breve e contundente, a realidade de distintos personagens relacionados com a atividade industrial de Bahía Blanca. Como você chegou a essas pessoas?
El puerto tem muito a ver com meu trabalho em Ferrowhite, um museu dedicado a registrar e difundir a memória dos trabalhadores desse lugar. Esses vídeos fazem parte de um processo extenso; a entrevista costuma ser o ponto de partida para uma relação que às vezes perdura no tempo. Pessoas como Atilio ou Pedro Marto passaram de entrevistados a parte da vida diária de nosso museu. Entrevistamos Pedro há três ou quatro anos. Hoje ele é protagonista de Marto concejal [Marto vereador], obra de teatro documental em que conta sua vida. O que começou como vídeo terminou teatro. O teatro resultou para mim em uma forma radical de documentário colaborativo, em que o trabalho de edição é realizado com o entrevistado, sobre sua própria memória e corpo.
Ferrowhite é um espaço bastante singular, em que a história, como disciplina, se cruza com práticas e reflexões que vêm do campo das artes. Nesse contexto, acredito que a série El puerto explora o vínculo improvável entre museu e televisão, ou seja, entre uma instituição que procura ampliar nossa experiência do tempo e um meio que, com sua instantaneidade, reduz essa experiência até quase anulá-la. Cada episódio da série El puerto brinca de ser televisão – e a retórica televisiva é útil, na medida em que permite atrair para o museu um público mais amplo, não especializado; mas trata-se de uma televisão lenta, uma televisão sem canais ou transmissora, que se propaga de mão em mão, e tem por trás de cada minuto editado dezenas de horas de registro.

Há uma forte carga documental nesses trabalhos, que destacam pessoas em condições sociais precárias, mas que solucionam seus problemas com ânimo e, às vezes, bom humor. Documentário, retrato social e videoarte: essa mistura está na essência de sua obra?

É verdade, as coisas se misturam. Ainda que não ache que a mistura resulte em algum tipo de essência. Pelo menos não é essa a intenção. Se a mistura se estabiliza, ela se converte em receita, um modo de impor uma justa proporção por sobre a heterogeneidade dos elementos que estão em jogo. A idéia, pelo contrário, é inquietar, ao menos um pouco, as previsibilidades próprias de um gênero ou disciplina ao transpô-los ou cruzá-los com outros.
Um vídeo como Canto de aves pampeanas pode ser entendido como uma espécie de discurso ecológico, próprio de certa tradição documental, mas pode ser visto, também, do ponto de vista da especificidade do vídeo como arte, se prestarmos atenção, por exemplo, na convivência de distintas temporalidades dentro de um mesmo plano. Em Canto de aves... cada imagem é composta por fragmentos de cenas distintas, fragmentos espacialmente contíguos entre si, mas descontínuos em termos temporais. Esses olhares têm para mim seu ponto de contato em um gênero aparentemente distante, a pintura de paisagens. É na paisagem pictórica que a crônica da transformação da natureza pelo capitalismo e a busca de novas formas de representar o tempo e o espaço se enlaçam. Talvez Canto de aves pampeanas possa ser pensado como uma tentativa modesta de propor novamente, e por outros meios, tarefas e preocupações que já foram próprias do pintor.
Esses vídeos não são mais do que tentativas de tornar um lugar habitável. Portanto, o que eles gostariam de aprender dos “sobreviventes” que retratam é algo mais que um tema: é uma lógica, uma maneira de fazer. Diz-se que nas construções mais velhas do porto de Ingeniero White é possível encontrar ainda os materiais que o Ferrocarril del Sud trouxe. Chapas supranumerárias e madeiras de embalagem utilizadas para improvisar casas que durariam mais de um século. O dado é menos pitoresco do que parece. Do ponto de vista dos atuais engenheiros da indústria, Ingeniero White seria um resíduo que o presente desenvolvimento da ciência logística estaria em condições de suprimir. Apesar disso, é difícil precisar quanto, na vida dos habitantes do porto, continua a depender dessa mesma habilidade furtiva, da faculdade de operar com restos para estabelecer com eles combinações inesperadas.