Curadoria convidada |
Releitura, à luz do contemporâneo, da produção resguardada pelo Acervo Videobrasil, reúne dezesseis obras realizadas entre 1978 e 2012 por artistas do Sul global. Os trabalhos e o contexto brasileiros inspiram os três eixos da curadoria - Afeições, tempos e estradas; Democracia, documento e ficção; e Fala, escuta e dissenso –, que dialogam com o universo das obras do Festival. O título cita frase da artista Lygia Pape, ao interpelar o crítico Mário Pedrosa em entrevista ao jornal O Pasquim em 1981. A exposição paralela do 19º Festival tem curadoria de Diego Matos, coordenador de Arquivo e Pesquisa da Associação Cultural Videobrasil

Artistas

Obras

Texto de curadoria Diego Moreira Matos, 2015

Quem nasce pra aventura não toma outro rumo

Em 1981, em entrevista concedida ao Pasquim por intermédio de uma série de intelectuais, artistas ou formadores de opinião, Mário Pedrosa ouviria a sentença: “Quem nasce pra aventura não toma outro rumo”, proferida pela Pape, que o interpolara logo no início da entrevista. Na virada para os anos 1980, em um momento de crise com o fim das esperanças, frustradas pelo regime militar, e escancaramento, portanto, de um trauma na sociedade brasileira, que até hoje reverbera, o intelectual — provocador, professor e crítico — renovava a crença no papel do artista e do intelectual público, bem como na relação inerente entre arte e política. Com essa perspectiva, a arte, naquele momento histórico e naquele ambiente brasileiro, parecia também resgatar o seu caráter de resistência de maneira mais imediata — e o vídeo, em toda a sua natureza proteiforme, teria, então, esse papel fundamental.

É essa aventura e seu lugar de partida, o Brasil e toda a sua ambivalência, que a mostra busca apresentar. Trata-se de um olhar que se impõe do sul ao norte por meio de razões poéticas, de outras histórias e ficções, dos dissensos  frente ao campo social normativo, como também de outros lugares — mapeados geograficamente, mas excluídos da cultura hegemônica. São histórias que se entrecruzam e refletem o campo irrestrito da arte e de sua atualidade. O dispositivo para esse exercício de tradução, por ora, é a exposição que torna visível um lugar de fala; ela é, por si só, uma aventura com lastro histórico.

Demarcar esse lugar, fincar discursos e estabelecer ritmos e tempos são os papéis que determinadas obras pontuais — aos modos de interlúdios —, de artistas como Cristiano Lenhardt e João Moreira Salles, exercem na aberta narrativa desta curadoria. O primeiro nos situa no âmbito do lugar geográfico, e o segundo, no lugar sensível da arte. Em um arco temporal que vai de 1978 a 2012, 16 obras representam 16 artistas de lugares e vivências distintas, o que não impede, no entanto, de evidenciar o Brasil como lugar de partida de um ciclo que não se fecha.

O contexto brasileiro, tomado como eixo norteador, vai ao encontro de outras referências geopolíticas, criando para a exposição três conjuntos, cada um com seu campo temático. Os núcleos foram nomeados em consonância com os aportes trazidos pelos artistas e trabalhos selecionados para esta edição do Festival, ao mesmo tempo em que nomeiam o lugar de partida das produções brasileiras e de como elas dialogam com contextos externos tão dissonantes e, ao mesmo tempo, tão próximos. São eles os rumos desta aventura construída e de muitas outras que serão estabelecidas pelo público. Democracia, documento e ficção conta com os olhares de Geraldo Anhaia Mello, Malek Bensmaïl, The Otolith Group e Claudia Aravena. Afeições, tempos e estradas, o segundo agrupamento e epicentro da exposição, é composto pela dupla Karim Aïnouz e Marcelo Gomes, os brasileiros Marcellvs L. e Cao Guimarães, e a israelense Nurit Sharett. Em Fala, escuta e dissenso, Sandra Kogut, Rita Moreira, Carlos Nader e Clive van den Berg evidenciam a arena política de diversos debates públicos que afloram nos processos cotidianos da vivência democrática. Incide também naquilo que Jacques Rancière denuncia como a ideia de um “ódio” à própria democracia que parece não ascender à plenitude.

Complementam os interlúdios a obra de Gabriel Acevedo e um segundo trabalho de Lenhardt, também da série “Ao Vivo” — mais uma vez, representando a veracidade dos eventos cotidianos, evidenciando a falsa perspectiva de um sentimento de transformação pragmática e técnica. Aos modos de uma sinédoque (a personificação das obras e de seus lugares), são os trabalhos que aqui se movimentam pelo próprio caminhar do espectador, criando relações que se sobrepõem. Para cada conjunto ou vizinhança e tempos aqui contidos, são construídos cheios e vazios, conflitos e aproximações, reclusões e espraiamentos.

Ao final desta jornada, tomamos permissão para usar as palavras atemporais de Mário Pedrosa ao descrever, no princípio dos anos 1980, os seus objetivos enquanto realizador de exposições e pensador. Como lição, evocamos, então, duas condicionantes fundamentais para os percursos expositivos fundados na memória crítica de um acervo: “mostrar que a arte não é uma coisa artificial, que ela vem do homem, qualquer que seja a tecnologia em que viva. A tecnologia prepara, mas não cria nada, nem ontem nem hoje”.            

Texto institucional Solange Farkas, 2015

Entre o presente e o passado

A exposição Quem nasce pra aventura não toma outro rumo dá continuidade à política de ativações do acervo da Associação Cultural Videobrasil, que, ao longo dos anos, vem ganhando progressivamente mais visibilidade. Enquanto coleção em constante expansão, o acervo conta, atualmente, com mais de 1.400 obras digitalizadas, que participaram das mostras competitivas do Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil desde sua primeira edição, em 1983, além de doações, documentários, registros de performances e clássicos da videoarte internacional.

Quem nasce pra aventura não toma outro rumo deseja ampliar e aprofundar o alcance desse acervo, reunido em mais de trinta anos de atividades. Concebida como desdobramento das reflexões trazidas pelas obras selecionadas para a 19ª edição do Festival, a curadoria de Diego Matos propõe um recorte sobre o acervo que põe em evidência o diálogo entre presente e passado na produção artística e revela o potencial crítico da coleção, com obras que — apesar de produzidas em diferentes anos — continuam a informar e tensionar o presente. Nesse sentido, é importante destacar o trabalho realizado pelo núcleo de pesquisa do Videobrasil, que tem como missão criar e alimentar uma trama sofisticada de conteúdos relacionados às obras do acervo, por meio de uma contínua articulação dessas obras com textos críticos contemporâneos.

A presença de Quem nasce pra aventura não toma outro rumo no Paço das Artes confere ainda a esta edição do Festival uma capilaridade inédita. Pondo lado a lado as exposições realizadas no Sesc Pompeia, no Galpão VB e no Paço das Artes,  podemos traçar um panorama ao mesmo tempo histórico e contemporâneo de uma produção artística que não se recusa a abordar alguns dos temas mais urgentes da nossa época. O recuo reflexivo proposto aqui dá densidade histórica às reflexões desenvolvidas nas diversas ações do Festival. Desse modo, a exposição reafirma o papel da coleção como motor que orienta nosso trabalho e permite vislumbrar novas relações entre a produção artística e a realidade contemporânea.

Texto institucional Priscila Arantes, 2015

Paço das Artes e Videobrasil: diálogos e parceria

A aposta no experimental, no risco, no trabalho de jovens artistas e na multiplicidade de olhares é o cerne da parceria entre o Paço das Artes e a Associação Cultural Videobrasil, iniciada em 2001.

Naquele ano, o Paço das Artes editou o primeiro catálogo do acervo do Festival Videobrasil (1984-2001), reforçando, assim, a aposta da instituição no apoio e difusão da iniciativa pioneira da associação na investigação do vídeo como linguagem artística no Brasil.

Em 2015, o Paço das Artes tem o prazer de retomar essa parceria ao receber uma nova exposição, que se debruça sobre o acervo do Videobrasil. A mostra apresenta obras de 16 artistas de diversas regiões do mundo. Assim, o novo encontro entre as instituições amplia as discussões dos últimos 14 anos de parceria ao tocar em outros pontos fundamentais para o Paço das Artes: as referências geopolíticas a partir da arte e a questão do acervo e da memória da arte contemporânea.

Destacar a produção artística de países do Sul global (América Latina, Caribe, África, Oriente Médio, Oceania e alguns países da Europa e da Ásia) tem sido um dos pilares de atuação do Paço das Artes nos últimos anos, especialmente no que diz respeito à América Latina, conforme atestado pelas discussões levantadas no Seminário Internacional de Arte Contemporânea (2014 e 2015, mais precisamente) e é também o foco do 19º Festival de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil. Não por acaso, a associação, em sua 19ª edição, tem como eixo temático "Panoramas do Sul".

Já ao exibir parte do acervo da Associação Cultural Videobrasil, o Paço das Artes toca em outro ponto fundamental para a história e memória do trabalho em arte contemporânea, atestada por inúmeras ações — tais como o lançamento do arquivo online MaPA (Memória: Paço das Artes) —, que, ao longo dos últimos anos e, em sintonia com o Videobrasil, apresenta-se como estratégia de construção da memória do que vem sendo feito na "parte sul" do continente americano.