VIDEOBRASIL 40 | 3º Videobrasil

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postado em 03/11/2022

 

Na derrocada da ditadura, vídeo luta por espaço na TV

 

Em 1985, já não se podia dizer que o vídeo era exatamente uma novidade na vida dos brasileiros. Ainda visto como inovador e mesmo que não totalmente democratizado em um país tão desigual, o formato se espalhava rapidamente por setores da sociedade e entre a classe artística. É neste contexto – no ano que marca oficialmente o fim da ditadura civil-militar brasileira (1964-1985) – que foi realizado o III Festival Fotoptica Videobrasil*.

Para contextualizar o período, vale destacar de saída um trecho do texto de apresentação do evento, escrito pelo presidente da Fotoptica, Thomaz Farkas: “O cinema soviético inventou o ‘cine-olho’. Nós vamos apresentar o ‘vídeo-olho’. Muito maior, mais acessível, por sorte, com chance de escapar do olho Orwelliano, pois oferece a oportunidade de escolha. Segundo estimativas, devemos ter mais de um milhão de videocassetes em uso. Muito mais que projetores de cinema. São afinal muito mais simples, mais fáceis e podem estar na casa de todos”. E Farkas não falava apenas de um novo mercado, como se vê na sequência: “Acreditamos que venha a ser um fato cultural característico, galopante e avassalador”.
 

 

Após dois anos no Museu da Imagem e do Som – que naquele momento passava por reforma –, o festival aconteceu no Teatro Sérgio Cardoso, em São Paulo, entre os dias 21 e 27 de outubro de 1985: mostra competitiva, retrospectivas, exposição, performances e debates movimentaram os espaços do teatro. Como características mais gerais da edição, pode-se falar de um amadurecimento na produção em vídeo e em uma diminuição do tom crítico em relação aos canais de TV aberta. Isso não significou, no entanto, uma retração na discussão sobre o monopólio estatal das emissoras, com uma demanda crescente pela democratização do acesso e posse dos meios de radiodifusão no Brasil. O espaço dado ao chamado videoteatro, na figura de Otávio Donasci, também teve destaque na edição.

Apesar de uma notável efervescência no meio cultural, o III festival ocorre em meio a certo anticlímax político: após o fracasso da demanda popular por eleições diretas para presidente, a escolha do Colégio Eleitoral foi por Tancredo Neves - opositor do regime - o que soava como uma vitória relativa. Com sua morte, no entanto, José Sarney, um histórico apoiador da ditadura, assume a cadeira. Este contexto não fez com que o Videobrasil deixasse de ser um espaço de fortalecimento das demandas ligadas à ideia de democratização: entre elas, o debate sobre o projeto Antena Livre, campanha pela concessão de um canal UHF para a produção independente – ou seja, a criação de um canal que desse vasão à crescente produção em vídeo. Mesmo que não vitoriosa, a campanha criou o ambiente para mudanças significativas anos depois.

 

 

Como explica Gabriel Priolli em texto para o livro sobre os 30 anos do Videobrasil, “a explosão do vídeo independente, na primeira metade dos anos 1980, impulsiona o movimento das rádios livres, que rapidamente inclui também a televisão e evolui para uma proposta de ‘reforma agrária do ar’”. Mais à frente, ele completa que várias das propostas acabaram acolhidas na Constituição Federal de 1988 e na Lei de TV a Cabo, de 1995.

Priolli ressalta, no entanto, que as maiores vitórias do vídeo independente em um primeiro momento se deram dentro do “campo adversário”. Ou seja, mais do que nos debates formais fomentados, as mudanças começaram pela inclusão de programas de vídeo independentes nos próprios canais dominantes da TV aberta. São exemplos o quadro do Olhar Eletrônico no Fantástico e a Armação Ilimitada, ambos na Globo, o Fábrica do Som, na TV Cultura, ou a TV Mix, na Gazeta – canal que mais apostou no vídeo independente.

Uma longa matéria na revista Veja, na semana do III Festival, desenvolvia o tema: “Em apenas três anos a geração do vídeo deixou de ser vista como jovens que queriam brincar de televisão para ser levada a sério pelos profissionais mais exigentes das grandes redes nacionais. A geração do Cinema Novo levou uma década para se solidificar, a um custo financeiro bem superior. (...) Nos jovens produtores de vídeo, o passo é bem mais acelerado”. Ainda assim é preciso ressaltar, segundo a fundadora e diretora do Videobrasil, Solange Oliveira Farkas, que a entrada do vídeo na TV era algo tímido e incipiente, mesmo que gerasse certa euforia.

Imprensa e Mostra Competitiva

Pelo terceiro ano seguido, o evento recebeu grande atenção da imprensa, que destacava a qualidade crescente dos trabalhos – em contraste com as críticas negativas publicadas durante o evento do ano anterior. “Maturidade da produção marcou o III Vídeo Brasil”, manchetava a Folha de S.Paulo. A maturidade nas telas não significava uma oposição à juventude dos participantes, como dizia trecho do texto do Jornal da Tarde: “Jovens de cabelos curtíssimos, parcialmente iluminados por luzes de monitores, os videomakers, já formam um grupo numeroso: reunidos, conseguiram lotar o saguão, mezanino e auditório do Teatro Sérgio Cardoso”.

Um dos grupos que encabeçou este amadurecimento foi o Olhar Eletrônico, que, bastante jovem, já ganhou retrospectiva no evento com 12 obras apresentadas. Mas, para além de destacar os jovens, o terceiro festival apresentou também uma mostra dedicada aos pioneiros do vídeo no Brasil. Resultado de um projeto de restauração das obras, que geraria ainda a Videoteca Videobrasil, foi organizada a mostra Pioneiros (com curadoria de Lucila Meireles), que reuniu obras de nomes atuantes já nos anos 1970. Entre os 35 trabalhos apresentados estavam vídeos de Anna Bella Geiger, Ivens Machado, Regina Silveira, Julio Plaza, José Roberto Aguilar, Carmela Gross, Lenora de Barros e Wesley Duke Lee – muitos deles produzidos com incentivo do professor Walter Zanini, então diretor do MAC/USP, que havia trazido do exterior um equipamento (Portapak) ainda não comercializado no Brasil.

Mas, como sempre, os olhos estavam principalmente voltados para a Mostra Competitiva. Nela, das 98 obras inscritas, 50 foram selecionadas. Entre os artistas participantes estavam nomes como Carlos Porto, Celso Fioravante, Cláudio Barroso, Claudio Ferrario, Eder Santos, Eduardo Homem, Geraldo Anhaia Mello, Gil Ribeiro, José Luiz Nogueira, Luiz Algarra, Marcus Vinícius Araújo Nascimento, Moysés Baumstein, Pedro Vieira, Renato Bulcão, TVDO, Valéria Burgos e Walter Silveira.

O Prêmio especial foi para cinco trabalhos: Mulher Índia, de Lili Bandeira, uma reportagem sobre a vida das índias de uma aldeia Guarani próxima a São Paulo; Terra Santa, de Rita Moreira, leitura "religiosa" de um acampamento sem-terra; Existirmos... a que será que se destina, um documentário-ficção do coletivo Todo Mundo Vídeo; Meu desejo é cansaço, de Leonardo e Margot Crescenti, vídeo que mostra os lentos movimentos de corpo de uma jovem em sua cama; e Seres Noturnos, de Ruth Slinger, um clipe ficcional de moda em que atores e modelos se movimentam por pontos conhecidos de São Paulo.

 

 

Houve ainda outras premiações, desta vez divididas entre U-matic e VHS (as duas principais tecnologias de produção de vídeo utilizadas à época). Entre as categorias estavam as de melhor clipe, documentário, obra experimental e ficção. Além delas, o Grande Prêmio VHS foi para Vídeo noir, de Eduardo Oinegue, Geni Kikuta, Luiz Claudio Lins e Renato Delmanto, uma obra de homenagem à estética dos filmes policiais hollywoodianos dos anos 1940; e o Grande Prêmio U-matic ficou nas mãos de Amigo urso, da TV Viva, programa de humor sobre a figura do “corno” - o traído -, apresentado nas ruas de Recife pelo personagem repórter Brivaldo.

Por fim, o prêmio do Júri Popular foi para o também humorístico 55, um programa temático sobre o cometa Halley com um telejornal, propagandas de produtos criados em homenagem ao cometa e uma entrevista com Halley - vivido pelo ator Marcelo Mansfield. Mais uma vez, como no ano anterior, o humor surgia como um grande nicho para a produção em vídeo, mostrando um caminho que teria grande influência na TV aberta nos anos seguintes.

Outras atividades

Outro grande destaque do festival foi a atuação de Otávio Donasci, com suas performances realizadas ao longo da programação. Participante também das duas primeiras edições do Videobrasil, Donasci aprofundou sua pesquisa performática e o que chamou de videoteatro. Em texto publicado à época, ele afirmou: “Seria muito rico para o teatro se pudesse incorporar o vídeo como instrumento da linguagem dramática. Seria muito rico para a expressão humana se conseguíssemos incorporar o vídeo, que é a síntese das tecno-imagens, com o teatro, que tem no autor ao vivo seu foco principal de expressão. Foi querendo isso que nasceu o videoteatro.”

A partir disso, suas performances na edição foram o Videotauro – em que um cavalo com um monitor de TV no lugar da cabeça circulou pelas ruas do Bixiga; as Videocriaturas, onde uma delas passeava pela exposição enquanto outras duas lutam a arte-marcial kendô; uma Videossinfonia; e a A Máscara Eletrônica, projeto em que a expressão facial do ator era visualizada no "videorrosto".

Por fim, vale citar como atividades importantes do III Festival a exibição do programa Conexão Internacional, uma entrevista com o escritor argentino Jorge Luís Borges; a Mostra Fernando Gabeira, uma coletânea dos trabalhos em vídeo do autor – tratando com viés politizado temas como agrotóxicos, HIV, lixo atômico, pessoas em situação de rua etc. –; e a exibição do documentário Gay Pride Parade, de Cândido José Mendes Almeida e Hélio Alvarez, sobre a parada gay anual em Nova York (no Brasil, o evento surgiu apenas em 1997, muito tempo depois). Além deles, a exposição A Arte na Trama Eletrônica reuniu cinco grafistas do Videotexto de diferentes países sob organização de Rodolfo Cittadino, artista egípcio de origem italiana e radicado no Brasil.

 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do terceiro Videobrasil, por Bill Martinez.

Galeria 1
1. "Amigo Urso", da TV Viva.
2. Público no Teatro Sérgio Cardoso.
3. "Videotauro", performance de Otávio Donasci.
4. Cacá Rosset, Tadeu Jungle e Thomaz Farkas.
5. "UBU - Folias Physicas Pataphysicas e Musicaes", de Pedro Vieira e TVDO.
6. Walter Silveira e Tadeu Jungle.

Galeria 2
1. Palco do Teatro Sérgio Cardoso.
2. "Homenagem a George Segal", de Lenora de Barros e Walter Silveira.
3. Equipe de "Amigo Urso" na premiação.
4. "Video Noir", de Eduardo Oinegue, Geni Kikuta, Luiz Claudio Lins e Renato Delmanto.
5. Walter Durst, Walcyr Carrasco e Carlos Lombardi.
6. "Seres noturnos", de Ruth Slinger.