OCULA: Raphael Fonseca e Renée Akitelek Mboya sobre a Construção da Memória no Sesc_Videobrasil 

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postado em 22/11/2022

Leia a versão original da matéria no site da revista Ocula, neste link. Abaixo, publicamos o artigo completo traduzido em português.

Raphael Fonseca e Renée Akitelek Mboya sobre a Construção da Memória no Sesc_Videobrasil 

CONTEÚDO PATROCINADO | SESC_VIDEOBRASIL e Ocula Magazine
Conversa com Tessa Moldan


São Paulo, 23 de novembro de 2022

Diante de mais de 2.300 inscrições de artistas, os curadores Raphael Fonseca e Renée Akitelek Mboya, juntamente com a diretora artística do Videobrasil, Solange Farkas, estão em meio a um monumental processo de seleção para a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil.

O título da exposição, A memória é uma ilha de edição, foi retirado de um verso do poeta brasileiro Waly Salomão, cujo conjunto da obra é uma resposta ao Brasil pós-ditadura. Programada para acontecer em outubro de 2023 no Sesc 24 de Maio, em São Paulo, a edição de comemoração dos 40 anos ocorre após o período tenso da presidência de Bolsonaro, com a dissolução do Ministério da Cultura e cortes dramáticos no financiamento das artes.

Fundado em 1983, dois anos antes do fim da ditadura militar, o Videobrasil surgiu como um festival anual de videoarte, com artistas brasileiros, no auditório do Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Em um momento de rígido controle estatal sobre as concessões de transmissão, a exposição teve como reação encontrar um novo espaço para a expressão e divulgação de perspectivas alternativas.

Ao longo das décadas, o Videobrasil se reinventou diversas vezes, abraçando a internacionalização e mantendo-se atento ao seu aspecto local. No início dos anos 1990, o festival se abriu a artistas de regiões com experiências compartilhadas de opressão política e cultural, com foco no Sul geopolítico. No entanto, como enfatiza a fundadora e diretora artística do Videobrasil, Solange Farkas, “nossa definição de Sul Global nunca se fixou em seus limites geográficos, sempre desestabilizando o que é considerado 'o Sul' no complexo campo da produção artística hegemônica”.

Importante para a longevidade do Videobrasil tem sido a parceria com o Sesc, abreviação de Serviço Social do Comércio, instituição privada que, desde 1947, viabiliza a abertura de espaços públicos para o estímulo e a divulgação da arte e da cultura no Brasil. Mantido por impostos arrecadados de setores do comércio e serviços, o Sesc conta atualmente com mais de 44 unidades em São Paulo e iniciou sua relação com o Videobrasil em 1992, que é mantida com o diretor do Sesc, o sociólogo e gestor cultural Danilo Santos de Miranda.

Embora adotando a designação de bienal apenas em 2019, em função de sua escala e da necessidade de espaçar o intervalo entre as mostras, o Videobrasil segue apoiando a experimentação e as práticas de vanguarda que são feitas à margem do circuito artístico mundial dominante.

Na virada do milênio, a plataforma passou a expandir seu foco para práticas interdisciplinares, a partir da exposição Narrativas Possíveis - Práticas Artísticas no Líbano – realizada durante a 14ª edição do Videobrasil – em 2003. Com curadoria de Christine Thomé e Akram Zaatari, Narrativas Possíveis apresentou obras de artistas como Lamia Joreige, Gilbert Hage, Marwan Rechmaoui, Jalal Toufic e Walid Raad, abrangendo fotografia, performances, vídeos e publicações, abordando a identidade libanesa após a Guerra Civil (1975-1990).

Em 2011, a exposição anual do Videobrasil se abriu para diferentes mídias, agora incluindo instalações, performances, fotografias, pinturas e livros de artista, além de videoarte e arte eletrônica.

A constituição do acervo Videobrasil, uma coleção monumental com mais de 3.000 obras de importantes artistas brasileiros como Rosângela Rennó, Marina Abs, Rafael França e Eder Santos também se tornou um dos principais aspectos da plataforma. Memórias Inapagáveis, uma grande exposição com curadoria de Agustín Pérez Rubio, realizada em 2014, tratou das histórias de apagamento e seu impacto contínuo na violência do presente, com obras do acervo, incluindo as de Jonathas de Andrade, León Ferrari e Aurélio Michiles.

Explorando o legado de vídeo do Videobrasil e as inextricáveis associações dessa mídia com a passagem do tempo e da memória, a indagação que Fonseca e Mboya lançam para a 22ª edição é: “Quais são os limites éticos de um corte? Quem detém o poder de fazê-lo? Como forjar a memória do que não vimos ou sentimos em nossos corpos? Quais são os limites da memória?”.

Fonseca e Mboya estão em processo de seleção de obras para a 22ª Bienal Sesc_Videobrasil com a colaboração de outros sete curadores internacionais, entre eles Amanda Carneiro, do Museu de Arte de São Paulo; Tereza Jindrová, crítica e curadora radicada em Praga; Nomaduma Rosa Masilela, uma das curadoras da 10ª Bienal de Berlim ao lado de Gabi Ngcobo; Siddharta Perez, do NUS Museum, em Singapura; Ana Salazar, curadora e cofundadora do Museum for the Displaced, uma “parainstituição” que aborda questões de migração forçada por meio da arte; e Ying Kwok, do Tai Kwun, Hong Kong.

Neste diálogo, Fonseca e Mboya compartilham suas experiências no processo de seleção, seus próprios pontos de vista curatoriais e como buscam encontrar um equilíbrio entre a localidade da exposição e sua perspectiva global.

Tessa Moldan: Em 1983, o Videobrasil foi criado com foco no vídeo e obras multimídia de autoria de artistas do Sul geopolítico. Desde então, a exposição se expandiu e passou a abranger diversas mídias, e as perspectivas sobre e do Sul Global permanecem dinâmicas e em constante mudança. Vocês poderiam me contar um pouco sobre como têm abordado esses legados para a próxima edição de 40 anos?

Raphael Fonseca: O Videobrasil mudou muito ao longo dos anos. Não sou de São Paulo, sou do Rio, e a primeira edição que vi foi a de 2011. O que acho interessante é que, quando foi concebido, não era uma bienal, era um festival anual dedicado ao vídeo e só com artistas do Brasil.

A primeira edição dedicada ao Sul Global foi realizada em 1992. A partir daí, muitos artistas de todo o hemisfério Sul começaram a se envolver e, em 2011, Solange decidiu expandir o foco para além do vídeo. Desde 2019, o evento tem assumido a forma de uma bienal.

Renée e eu discutimos longamente sobre como poderíamos tratar dessa história, não apenas na exposição, mas também nos programas públicos e nas publicações. Na esteira da pandemia, é importante repensar como o vídeo se tornou a principal mídia em nossas vidas, seja interagindo pela internet, assistindo ao YouTube, jogando e assim por diante. Qualquer curador trabalhando com o Videobrasil se preocupará com esses desdobramentos.

Tessa: O título da 22ª edição, A memória é uma ilha de edição, é extraído do poema “Carta aberta a John Ashbery”, de Waly Salomão, publicado em seu livro Algaravias: Câmara de ecos (1995), que inclui reflexões sobre as interações entre seres humanos e tecnologia, bem como os anos pós-ditadura no Brasil – contexto em que o Videobrasil surgiu. Acho interessante a concepção de memória aqui, como algo intangível, mas uma “ilha de edição” sugere que se pode assumir o controle dela. Vocês poderiam elaborar um pouco essa ideia e como essas ilhas de edição serão traduzidas no espaço expositivo?

Renée Akitelek Mboya: A forma como pensamos sobre a memória depende de nossa posição cultural, no sentido de nossa formação e origem. A memória é percebida de formas distintas nas diferentes culturas. No contexto de onde venho, no Quênia, e em muitas culturas similares na minha região, a memória é algo maleável e está sujeita a mudanças constantes.

É quase como uma ficção que existe e depende do controle do estado, para então se tornar uma certa verdade quando um órgão do governo decide o que ela será. Acho que esse vai ser um aspecto interessante da exposição: as diferentes perspectivas sobre o que uma memória pode ser, qual o nosso agenciamento editorial na construção da memória e qual pode ser o seu uso.

Assisti ontem a um filme de Jean-Pierre Bekolo, La Grammaire de ma Grand Mère (1996), no qual o cineasta Djibril Diop Mambéty discute as diferentes gramáticas existentes. Uma das coisas que Mambéty diz é: “Era uma vez um futuro”.

Acho que é uma ideia interessante pensar sobre o que pode significar projetar a memória em um espaço futuro e depois reorientar seu vocabulário. Estamos em meio ao processo de seleção para a exposição, então estamos vendo muitas interpretações sobre o que a memória é e o que ela pode ser.

Raphael: Também é curioso ver como diferentes artistas de diferentes culturas, e também gerações, lidam com a ideia de memória. Por exemplo, temos artistas que trabalham com filmagens e colagens de arquivos, juntamente com artistas que trabalham com computação gráfica, que abordam a ideia do arquivo sendo estrangeiro a eles e elas e da memória como uma invenção completa. Há muitas formas interessantes de se tratar esses conceitos e ideias.

Tessa: O próprio filme reflete essa maleabilidade a que você se referia antes, Renée, em termos de como as imagens podem ser cortadas e dispostas. Esse potencial responde às questões da chamada da exposição, que pergunta: “Quais são os limites éticos de um corte? Quem detém o poder de fazê-lo? Como forjar a memória do que não vimos ou sentimos em nossos corpos? Quais são os limites da memória?”.

Essas questões me fazem pensar em seu trabalho com filme e memória, incluindo A Glossary of Words My Mother Never Taught Me (2021) – sua subversão linguística e visual do filme sensacionalista de 1966, Africa Addio. Você também tratou desse filme em um ensaio curatorial intitulado And Salt The Earth Behind You (2021), que documenta o protesto de estudantes negros, em 1966, no Astor Cinema em Kurfürstendamm em torno da exibição de Africa Addio.

Dado o enfoque histórico do Sesc_Videobrasil no vídeo, você poderia me contar um pouco sobre como sua própria prática fílmica irá contribuir com sua visão curatorial e a de Raphael?

Renée: Acho que devo esclarecer que não considero que eu tenha uma prática fílmica propriamente dita. Em meu trabalho, tenho me interessado em ativar e mobilizar arquivos coloniais. Abordei essa temática com a mesma ética que Solange deve ter tido em 1983, abordando uma nova mídia, que é relativamente móvel e facilmente traduzível ou transferível e que faz as pessoas sentirem que estão no momento da ocorrência. Para mim, a maneira mais fácil de pensar em reanimar esses arquivos foi colocá-los de volta na linha do tempo e ver como eles poderiam ser mobilizados, principalmente porque trabalho com materiais bastante violentos.

Acho que uma grande prioridade para mim é pensar na citação como um processo de construção de legados sociais e políticos que honram um passado e um futuro dentro do qual todos nós podemos nos visualizar. Historicamente, o vídeo requer uma comunidade para fazê-lo, mas não reconhecemos necessariamente a existência das pessoas envolvidas. E minha preocupação é que as primeiras pessoas a deixarem de ser mencionadas sejam as mulheres Negras – as mulheres Negras e queer, principalmente.

Raphael e eu discutimos muito sobre essa ideia do Sul Global e se ela é importante ou não para a atual geração de artistas e se pode ou não ser projetada em uma realidade na qual nos encontramos coletivamente na internet. À medida que o Videobrasil se globaliza, como ele reconhece o que é urgente no contexto local de São Paulo, que é [uma cidade] formada por uma comunidade muito dinâmica e global?

Portanto, como reconhecermos os legados dos quais viemos? Isso requer um equilíbrio. Acho que o vídeo nos dá acesso, mas também prescreve certos limites.

Tessa: Pensando no contexto local, queria perguntar a você, Raphael, acerca do seu trabalho anterior sobre a identidade e a política brasileiras. Penso, em particular, em seu doutorado sobre a iconografia da rede de descanso em relação à cultura brasileira, bem como em sua recente exposição de 13 artistas brasileiros emergentes em The Silence of Tired Tongues, apresentada no Framer Framed, em Amsterdã (24 de abril - 21 de agosto de 2022). Você poderia discutir como visualiza a identidade brasileira dentro da rede de práticas artísticas apresentadas no Sesc_Videobrasil?

Raphael: O Videobrasil é um evento que acontece em São Paulo e a maioria das pessoas que se inscrevem são artistas do Brasil. Mas, claro, a exposição é dedicada a todo o Sul Global, assim como a essa ficção do Sul Global.

Como curadores, temos que encontrar algum tipo de equilíbrio entre as presenças brasileira e internacional na mostra. Nasci no Brasil, fiz meu doutorado em arte brasileira, mas não quero cair nessa armadilha identitária de estar na América Latina e me sentir obrigado a trabalhar apenas com artistas dessa região.

Claro, é absolutamente normal e orgânico que eu tenha um certo tipo de conhecimento da região, mas ao mesmo tempo é um prazer enorme estar exposto a artistas vindos de regiões tão diferentes da América Latina, como Geórgia, Albânia, Bósnia e China... Como Renée mencionou, é o caso de encontrar um equilíbrio entre minha experiência anterior e o lugar de onde venho e os contextos da origem desses e dessas artistas.

É um grande desafio tratar de diferentes informações e narrativas e, ao mesmo tempo, evitar a expectativa de que todos os artistas precisam falar explicitamente sobre suas próprias culturas.

Como curadores é importante envolvermos artistas cujas obras podem estar ligadas a lugares específicos, mas também artistas que não tenham uma identidade específica ou ligação cultural visível em suas obras.

Tessa: O Videobrasil mantém parceria com o Sesc desde 1992. O que você diria que significou para o Videobrasil expor em centros culturais como o Sesc Pompeia e o Sesc 24 de Maio?

Raphael: O Sesc tem um papel muito importante na promoção do acesso da população à cultura na cidade de São Paulo, porque é tudo gratuito e acho uma honra fazer uma exposição em um lugar tão empenhado em formar novos públicos para a arte e, no nosso caso, a arte contemporânea.

O Sesc 24 de Maio é um espaço muito interessante, localizado no centro da cidade, próximo a um grande centro comercial. A maioria das lojas pertence a diferentes pessoas que vieram do Haiti ou de outras culturas das Áfricas.

Por exemplo, em frente ao Sesc há um prédio enorme e 90% das pessoas que trabalham lá são negras. Do outro lado da rua localiza-se um mercado bastante popular. Ou seja, é um público bem diversificado, e aí você mistura isso com um público de todo o estado de São Paulo e do país inteiro que vai até lá para ver as exposições. Então temos esse enorme caldeirão em ebulição, o que torna o local realmente especial.

Tessa: Vocês poderiam me contar um pouco sobre como está sendo o processo de seleção?

Renée: A equipe acabou de finalizar alguns detalhes da seleção inicial e é interessante notar a faixa demográfica dos tipos de artistas que se inscreveram. Foram 276 inscrições individuais de artistas e coletivos, de lugares inéditos até mesmo para uma mostra do porte da do Videobrasil. Mesmo como curadores que estão quase sempre viajando e trabalhando em diferentes contextos, existem alguns artistas ou comunidades de artistas com os quais não havíamos nos deparado antes.

Raphael: Trabalhei na comissão da edição passada e este ano recebemos muito mais inscrições. Sinto que as pessoas têm um desejo bem maior de se envolverem, por causa da pandemia e das tragédias pessoais que vivenciaram, e buscam se conciliar através da arte, sobretudo neste tema da memória.

Estamos lidando com artistas que trabalham através de muitas culturas diferentes, o que requer tempo para pesquisarmos e entendermos melhor quem são eles e elas. É um processo bem arqueológico e uma maneira interessante de trabalhar. Ao analisar essas obras de arte, vieram à mente muitas ideias para outras exposições.

Tessa: Imagino que seja uma tarefa um tanto quanto árdua, porque você começa com uma ideia e um tema em sua chamada, mas imagino que, ao receber esses diferentes trabalhos do mundo todo, você tem novas ideias sobre como a memória pode ser concebida por uma pessoa, contexto ou por meio de uma obra artística. A ideia inicial mudou ao longo do caminho, drasticamente?

Renée: Acho que depende de quando você me pergunta. Em diferentes momentos do processo seletivo, que já dura pouco mais de um mês, a abordagem foi diferente.

Acho que é um pouco de ambos: que você vivencia uma universalidade em sua abordagem da memória e as formas que escolhemos para memorizar e preservar a memória e, ao mesmo tempo, há dinâmicas tão diversas e inexplicáveis que não podem ser traduzidas.

Isso tem sido um aspecto interessante, porque o vídeo nos expôs a tantas linguagens e contextos que nunca teríamos tido a oportunidade de conhecer de outra forma e o processo de seleção reiterou que tudo é possível. —[O]