V-A-C Sreda: Solange Farkas fala sobre a videoarte

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postado em 25/02/2025

Leia a versão original da matéria no site GES-2 House of Culture. Abaixo, publicamos a entrevista completa traduzida em português.

Todo mundo é diretor (e artista). Solange Farkas fala sobre a videoarte 
Conversa com Daniil Beltsov

15 de fevereiro de 2025

GES-2 House of Culture apresentou a exposição Videobrasil. Needs No Translation: Four decades of video and performance, dedicada à história da videoarte na América Latina e nos países do Sul Global, de 1983 até os dias de hoje. Daniil Beltsov, editor da V–A–C Press e editor-chefe da revista online V–A–C Sreda, conversou com a curadora da exposição Solange Oliveira Farkas sobre os primórdios da videoarte no Brasil, as abordagens para a preservação desse patrimônio cultural e se os “reels” da internet podem ser considerados um fenômeno cultural relevante.

Solange Farkas é fundadora da Associação Cultural Videobrasil e atua como diretora artística do Festival/Bienal desde sua primeira edição, em 1983. Foi diretora e curadora-chefe do Museu de Arte Moderna da Bahia e curadora convidada em importantes eventos internacionais como o FUSO (Portugal), a Bienal de Sharjah (Emirados Árabes Unidos), a Bienal de Arte Contemporânea de Dak’Art (Senegal) e o Festival Internacional de Vídeo de Jacarta (Indonésia), entre outros, além de ter curado diversas exposições. Farkas integra o conselho da International Biennial Association e, em 2017, foi homenageada com o Montblanc Arts Patronage Award.

Daniil Beltsov: Você se lembra do seu primeiro contato com a videoarte? O que sentiu naquela ocasião?

Solange Farkas: Foi em 1989, na exposição Magiciens de la Terre, em Paris. Vi algumas obras do artista sul-coreano Nam June Paik. Fiquei muito impressionada com o uso inovador da tecnologia do vídeo, principalmente com as esculturas robóticas – um exemplo lindo de como a natureza dinâmica do vídeo pode ser incorporada à arte visual. Os trabalhos de Nam June Paik não só desafiaram as minhas ideias arraigadas sobre a criatividade, mas também demonstraram a potência do vídeo como meio de expressão artística. Essa experiência me mostrou como a tecnologia podia interagir diretamente com a cultura e influenciou muito a forma como eu passei a ver as práticas da arte contemporânea.

D.B.: O que despertou o seu interesse pelo vídeo como meio de expressão artística nos anos 1980?

S.F.: Logo depois de me formar na faculdade de jornalismo, comecei a me interessar por experimentos em artes audiovisuais. Naquela época, as primeiras câmeras de vídeo estavam chegando ao Brasil, e eu decidi aproveitar a oportunidade para explorar essa nova mídia. Ficou claro para mim que o vídeo podia servir não só como uma ferramenta de autoexpressão artística, mas também como uma forma de atrair e inspirar jovens artistas como eu.

D.B.: E foi nessa mesma época que a colaboração com artistas individuais levou ao surgimento do Festival Videobrasil?

S.F.: Sim, comecei a colaborar com todo mundo que se interessava pelo potencial do vídeo como meio. Nossos trabalhos não eram apenas projetos individuais, mas uma oportunidade de trocar ideias e experimentar de forma coletiva. Com o tempo, essa rede se ampliou, e passamos a nos conectar com outros artistas inovadores tanto no Brasil quanto no exterior.

Como você disse, essas conexões e esses diálogos foram evoluindo naturalmente e acabaram se tornando o Festival Internacional Videobrasil. Era uma verdadeira celebração da videoarte, um espaço onde artistas podiam se reunir e apresentar seus trabalhos. Foi incrível ver como aquele interesse inicial e aquelas as primeiras colaborações cresceram até se transformarem em algo muito maior – uma comunidade empenhada em expandir as fronteiras da videoarte.

D.B.: Hoje, o vídeo-ensaio talvez seja o gênero mais importante em termos de transmissão de informação. Sem falar que nossos celulares armazenam inúmeros vídeos, que são “documentos” de nossas vidas, formando uma espécie de paleta de memórias. Em outras palavras, o vídeo está em toda parte. Nesse sentido, para você é difícil diferenciar o vídeo como forma de arte do vídeo como ferramenta de registro do cotidiano, um meio de comunicação humana diária?

S.F.: Admito que, no começo, foi muito difícil entender esse limite. Isso aconteceu, em grande parte, porque eu via o meio a partir de uma perspectiva tradicional, usando categorias de narratividade e funcionalidade. Mas, com o tempo, a minha visão mudou, e consegui desenvolver uma compreensão mais sutil do fenômeno do vídeo. Ao dialogar com artistas e conhecer melhor os seus trabalhos, aprendi a enxergar o potencial criativo nos registros cotidianos em vídeo e a perceber como o mesmo meio pode assumir formas completamente distintas, dependendo da intenção do autor, do contexto ou da maneira como é executado.

No fim das contas, os limites entre arte e documentação da vida pessoal se mostraram bastante fluidos. Cada vídeo conta sua própria história, independentemente de ter sido concebido como uma obra de arte ou não. Resumindo, passei a abraçar o vídeo em todas as suas formas e a prestar atenção tanto ao seu potencial artístico quanto ao seu uso diário, cotidiano.

D.B.: Então, você poderia dar uma breve explicação do que pode e não pode ser considerado videoarte?

S.F.: Eu acho que a videoarte é um movimento da arte contemporânea que usa as possibilidades tecnológicas do vídeo como seu principal meio de expressão; engloba certas instalações, registros de performances e trabalhos experimentais que transitam entre diferentes linguagens. Ao contrário do cinema convencional, a videoarte prioriza aspectos conceituais e intenções artísticas, em vez de narrativas ou interesses comerciais.
Por outro lado, nem toda gravação em vídeo pode ser classificada como videoarte. Por exemplo, transmissões jornalísticas ou conteúdos publicitários geralmente têm funções específicas – como a disseminação de informação ou o entretenimento – e não a exploração artística. Embora esses formatos possam incorporar elementos estéticos, seu objetivo não é necessariamente questionar convenções ou provocar reflexões da mesma maneira que a videoarte faz. No fim das contas, a distinção está na intenção por trás da criação do vídeo e no contexto em que a obra é apresentada.

D.B.: A questão do público parece inevitável quando falamos de arte! Como é que o público do Videobrasil se desenvolveu?

S.F.: No começo, nosso público era formado principalmente por jovens e pessoas curiosas, que ansiavam por algo novo, que queriam explorar as possibilidades do vídeo como meio de expressão novo e experimental, com uma linguagem particular. Com o tempo, o público do Videobrasil mudou. Hoje, ele é muito mais amplo e inclui pessoas com interesses bem distintos: jovens artistas, estudantes, mestres consagrados e colecionadores. Essa diversidade prova que a videoarte se tornou uma forma consolidada e importante de expressão artística.
Trabalhamos ativamente para atrair um público diversificado, e programas inclusivos, oficinas e iniciativas educativas são fundamentais para que isso aconteça. Nosso objetivo é criar um ambiente onde todos se sintam bem-vindos e prontos para explorar o vídeo e o seu lugar na arte contemporânea.

D.B.: Recentemente, em Los Angeles, ocorreu um terrível desastre natural – incêndios destruíram muitas casas e, com elas, arquivos preciosos foram reduzidos a cinzas. Na sua opinião, como o armazenamento de obras de arte deveria ser organizado hoje: em suportes físicos em museus e galerias, ou será que é mais seguro guardar os arquivos na internet?

S.F.: Na minha opinião, tanto os sites quanto os museus desempenham funções importantes, mas distintas. O arquivamento online oferece maior acessibilidade e atinge um público global. O espaço digital é atualizado de forma dinâmica, refletindo as menores nuances na evolução da arte e da cultura, funcionando como um vasto repositório de memória. Já um museu necessariamente implica uma presença física, o que estabelece relações mais fortes entre pessoas, arte e história, enriquecendo a compreensão do espectador.

D.B.: Então, nesse caso, ambos são igualmente importantes.

S.F.: Sim, claro. Diante de acontecimentos recentes, como o incêndio catastrófico em Los Angeles, o arquivamento híbrido de obras tem se tornado cada vez mais relevante. Ao combinar as capacidades dos acervos online e físicos dos museus, podemos criar uma estratégia sustentável e eficaz de preservação das obras de arte. Isso garante não só a proteção da arte e da memória, mas também um engajamento constante com o público.

D.B.: Nos anos 1980, quando a videoarte ainda era incipiente, ela era mais restrita a artistas que não tinham acesso às transmissões televisivas e a outras plataformas populares. Hoje, com as redes sociais, qualquer um pode publicar vídeos – como isso afeta a linguagem e método da videoarte?

S.F.: É evidente que o advento das redes sociais e de plataformas como o YouTube transformou radicalmente o cenário do consumo de conteúdo, especialmente de vídeos. Enquanto nos anos 1980 a videoarte era, de fato, um movimento marginal e underground, hoje, a democratização da produção e distribuição de vídeos permite que praticamente qualquer um compartilhe seu trabalho com um público global. Essa mudança levou a uma diversificação de vozes e estilos na videoarte. No entanto, essa acessibilidade também traz novos desafios.

A influência dos algoritmos e a censura corporativa fazem com que a visibilidade de um trabalho não dependa apenas de sua qualidade ou singularidade, mas também do quanto ele se encaixa em determinadas agendas políticas ou mercadológicas. Logo, a linguagem e os métodos usados para a criação de trabalhos videográficos têm se adaptado para dialogar com essas plataformas e seus respectivos públicos. Muitos artistas incorporam elementos que refletem tendências virais ou exigências de formato, explorando a interseção e a interação entre a arte e o comercialismo.

Essa evolução nos leva a reavaliar as definições de videoarte. Embora as redes sociais possam levar à diluição certos valores artísticos tradicionais, elas também abrem novas possibilidades de experimentação criativa. Cada vez mais, artistas têm se engajado com formatos interativos, transmissões ao vivo, e com o retorno em tempo real do público, o que pode levá-los a adotar uma abordagem mais participativa e comunitária em seus trabalhos.

D.B.: Recentemente, um vídeo viralizou mostrando um rapaz criando videoclipes usando apenas inteligência artificial. Qual é a sua visão sobre o uso da IA na arte?

S.F.: Tenho várias opiniões sobre a inteligência artificial. Por um lado, trata-se de uma ferramenta poderosa que abre novas possibilidades para a expressão artística. O vídeo ao qual você se refere é um exemplo de como a tecnologia pode transformar o cenário criativo, dando a pessoas sem formação artística a oportunidade de criar. 

Por outro lado, o uso da IA precisa ser abordado de forma crítica, sem perder de vista os aspectos éticos envolvidos. Por exemplo, é preciso considerar questões como autoria e originalidade.

Embora a IA possa gerar obras impressionantes, é fundamental garantir que ela complemente a criatividade humana, em vez de substituí-la.

D.B.: Na Rússia, temos observado uma nova tendência no comportamento do público: as pessoas passam horas assistindo a vídeos curtos nas redes sociais. Acho que, ao falar sobre vídeo como meio artístico, é importante lembrar da realidade cotidiana que nos cerca, não apenas nos museus e galerias. Curiosamente, devido à popularidade dos “reels”, “clips” e “shorts”, a própria cultura da comunicação está se transformando. Percebo que as pessoas estão deixando de trocar mensagens de texto e passando a se comunicar através de vídeos curtos. Então, gostaria de perguntar: você assiste a “reels”? Qual é a sua opinião sobre esse fenômeno? Ele pode ser visto como um registro ou testemunho da nossa época que também deveria ser arquivado, preservado e organizado?

S.F.: Preciso trabalhar com vídeos curtos nas redes sociais, pois eles se tornaram uma parte essencial do consumo contemporâneo de mídia. Embora o uso de vídeos curtos em vez de texto possa tornar a comunicação mais envolvente e dinâmica, isso também levanta questões sobre a profundidade das interações e o potencial para o estabelecimento de relações mais superficiais.

Mesmo assim, não posso deixar de reconhecer que esses vídeos devem ser considerados registros de um momento singular da nossa cultura, marcado por um ritmo de vida extremamente acelerado. Assim como arquivamos obras de arte significativas, os fragmentos do cotidiano compartilhados nesses vídeos também merecem ser preservados. Eles encapsulam um período único, caracterizado pelo consumo rápido e por conexões efêmeras. E, embora muitos “reels” possam parecer triviais, quando vistos em conjunto, em seu contexto maior, formam um mosaico complexo que retrata o ser humano contemporâneo.