MitoMotim é um poema de verso único, trivial em antologias de palíndromos. É palavra gráfica e desenho literário. Como jogo de vice-versa, deve ser lido de frente para trás e de trás para frente. É mito de motim, motim de mito. Refere-se a quimeras tanto quanto à insubordinação. Propõe a fabulação de mundos e, lado a lado, a insurgência coletiva e desorganizada, espontânea e ruidosa, que se amotina com a pedra que tem à mão – seja ela poética ou política. MitoMotim espelha um tempo futuro embotado de passado, como se a história não escapasse de sucessivos retornos. Nesse lance de reflexos, pode ser tanto a ação quanto a impossibilidade da ação. A hipótese mágica ou o gesto pragmático. No Brasil de hoje, é invocado pela urgência das transformações.

Como exposição, Mitomotim reúne obras do Acervo Histórico Videobrasil em diálogo com trabalhos de artistas convidados. Da vasta coleção de filme e vídeo experimental, constituída desde 1983 por esta instituição, destacaram-se produções que contestam alguns dos fundamentos de nossa identidade como “povo brasileiro”, em consonância com o presente. Entre os trabalhos aqui apresentados há programas de televisão do final dos anos 80 e início dos 90, produzidos de forma independente e provocativa, que se situavam como discurso crítico aos meios de comunicação de massa. Contra a visada hegemônica, interessavam-se pelas imagens marginais, pelos sujeitos não representados, abrindo os microfones e posicionando a câmera fora dos quadros oficiais, em busca da revolução possível. Junto ao material televisivo, obras contemporâneas seguem tratando do entorno social anacrônico a despeito das décadas corridas. A produção de imagens, tão mais abundante revela, no entanto, novas e velhas fraturas. Por entre barreiras e interdições, promessas de vingança e planos de sabotagem, a obsolescência de nosso projeto de país é questionada.

No motim dos mitos, as obras encontram, do outro lado da barricada, uma nação com qualidades autoindulgentes e narrativas farsescas: a descoberta da Terra Brasilis, a natureza inesgotável, a resiliência alegre, o homem cordial, a democracia racial, o país do futuro. Há de se perguntar como reinventar este lugar que ainda se deixa ludibriar por pontes de ordem e progresso. Na mão dupla dos sentidos, os mitos de motim acionam uma memória de levantes que está investida de transgressão e inconformismo. Nesse contexto, questionam sobre as formas de se insurgir e a potência de criação de outras existências. Os mitos de motim desafiam a arte, tão precária quanto potente, em seu desejo de revolver a realidade.

Júlia Rebouças

 

Sobre a curadora

Júlia Rebouças (Aracaju, SE, 1984) é curadora, pesquisadora e crítica de arte. Foi cocuradora da 32a Bienal de São Paulo, Incerteza Viva (2016). De 2007 a 2015, trabalhou na curadoria do Instituto Inhotim, em Minas Gerais. Colaborou com a Associação Cultural Videobrasil integrando a comissão curadora dos 18º e 19º Festivais Internacionais de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em São Paulo. Foi curadora adjunta da 9ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre, mostra intitulada Se o clima for favorável, em 2013. Realiza diversos projetos curatoriais independentes, desenvolve projetos editoriais, escreve textos para catálogos de exposições, livros de artista e colabora com revistas de arte. É doutora pelo programa de pós-graduação em artes visuais da UFMG.