Entrevista Helio Hara, 2005

ENTREVISTA_EUSTÁQUIO NEVES


O trabalho de Eustáquio Neves, permeado por interferências físicas e químicas sobre a fotografia, caracteriza uma carreira marcada por imagens de grande impacto e amplo significado: pessoal, autobiográfico, e também sobre a própria condição da população afro-descendente no Brasil. O artista apresenta uma instalação inédita em Salvador, que dá início a uma nova fase de sua carreira: aqui, ele parte para projeções, e fala de sua idéia de trabalhar com vídeo.


Por Helio Hara


Em seu trabalho, há uma constante pesquisa e experimentação em torno de interferências (físicas, químicas). De que forma a instalação que apresentará na mostra, com projeções, representa uma nova etapa, um novo desafio?

Quem acompanha meu trabalho mais de perto vai perceber que eu continuo experimentado muito e fazendo menos interferências (físicas e químicas).

Fazer vídeo é uma vontade que me acompanha há muito tempo; na mostra em questão, o uso do vídeo de fato inaugura uma nova etapa na minha carreira e também não deixa de ser um desafio. Poucas são as curadorias que oferecem condições para produzir, e este é um desses raros momentos.


O crítico de fotografia inglês Mark Sealy diz que seu trabalho é clara e diretamente ligado à sua condição de negro. Isso é importante para você, ou preferiria ser visto e pensado apenas como um artista?

É bom ser visto e pensado como artista, mas também é bom não esquecer a condição de negro. Por exemplo, interferir fisicamente mas imagens é necessário para que eu expresse o que penso sobre a imagem ocidental.


Li que seu padrasto era de Moçambique. De alguma forma esse contato despertou em você algum tipo de relação com o passado, com a idéia de diáspora?

Essa informação sobre ter padrasto de Moçambique foi um equívoco de redação; quando dei esta entrevista eu disse que meu padrasto fazia parte de uma guarda de moçambiqueiros, que é uma manifestação profano-religiosa de resistência. Essa relação com o passado eu vivo no dia-a-dia diante das desigualdades, na batalha da minha mãe para criar com dignidade meus quatro irmãos e eu. Ela é uma figura forte e fundamental na minha formação.


Para onde caminha o seu trabalho, você gostaria de experimentar novos meios, como o vídeo?

Essa é a idéia, acho que eu sempre fiz fotografia pensando em cinema e o vídeo é um recurso mais acessível.


Utilizar elementos pessoais, como no caso de fotos da sua mãe, é um meio de pensar sobre sua própria trajetória? Esse confronto com o passado é algo doloroso ou prazeroso?

Prazer eu tenho no fazer, que poderia ser doloroso se não fosse o meu meio de expressão, instrumento, denúncia e reflexão. Meu trabalho é quase todo ele autobiográfico; a diferença é que agora, para discutir as profundas marcas da escravidão na atualidade, não por acaso faço apropriação de uma foto de minha mãe ainda jovem e de fotos minhas e da família.

Site da Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea:

Ensaio Mark Sealy, 2005

As fotos de Eustáquio Neves


Em 1995, fui convidado ao Brasil para falar sobre “Fotografia e identidade”, no “II Encontro Internacional de Fotografia” – São Paulo, 1995. Em minha breve estada, tive a oportunidade de ver alguns portfólios de fotógrafos, sobretudo da região de São Paulo. Fui informado pelo pessoal do NAFOTO (Núcleo de Amigos da Fotografia), organização sem fins lucrativos sediada em São Paulo, que um fotógrafo viria de ônibus de Minas Gerais, numa viagem que consumiria toda uma noite, especialmente para que eu o conhecesse. Seu nome era Eustáquio Neves, e confesso ter sido tomado de uma enorme responsabilidade e ansiedade diante da perspectiva do encontro. Fiquei preocupado com a possibilidade de a viagem não servir de grande coisa para ele, mas o temor se mostrou infundado. Ele apresentou um dos mais inovadores trabalhos de fotografia que já conheci, e a lembrança do encontro me emociona.

Em 1995, Eustáquio Neves já tinha dois trabalhos de peso, “Caos urbano” e “Arturos”. No primeiro, investiga uma temática que passa a ser recorrente em sua obra – a desigualdade social. “Caos urbano” é uma série de fotografias construídas que trata a paisagem urbana de forma niilista, abstrata, evocando o pesadelo do mundo pós-apocalíptico. As imagens trazem à tona uma tensão velada. À primeira impressão, as imagens gráficas transmitem um mal-estar com marcas do tempo sob forma de camadas que alternam significados distópicos. Na visão de Eustáquio Neves, a cidade é o ambiente mais hostil para a existência humana, um lugar largado aos mortos, onde a esperança parece ter sido abandonada e os valores, invertidos. As imagens de “Caos urbano” são literalmente sinais da existência desprovida e da dificuldade extrema que milhões de habitantes das cidades do mundo, cada vez mais, têm de enfrentar para simplesmente poder sobreviver. “Caos urbano” parece sugerir um passado resultante de um medo profundo do futuro para nos lembrar que sob o verniz de progresso social e do assim chamado desenvolvimento se encontra uma massa de desilusão, vidas fragmentadas, poluição e rios químicos.

A série “Arturos” foi criada em 1993-96. Nela, Eustáquio Neves demonstra o desejo que tem de criar um vínculo e celebrar, de forma direta, a cultura africana no Brasil. Os trabalhos são narrativas visuais complexas, que colocam a história diante de nossos olhos e, ao mesmo tempo, celebram o presente. “Arturos” estabelece uma referência à injustiça da escravidão e traz à tona a força, a disciplina e os valores da vida espiritual da comunidade de Arturos. As imagens afirmam e testemunham o poder do auto-respeito. Celebram o sentido profundo de identidade existente nessa comunidade. Percebe-se um prazer intenso e uma identidade muito forte nessa série. As imagens nos convidam a conhecer um mundo que está quase além das diferenças raciais, nos levam a um espaço que nos permite o tempo de nos questionarmos sobre a natureza do mundo espiritual e a complexa relação entre o cristianismo e a diáspora africana.

“Arturos” é um lembrete da necessidade e da função social inerente à cerimônia na sociedade e de como ela é catalisadora, capaz de unir as comunidades. “Arturos” é, em si, um santuário para um povo que vive como se fosse uma família sagrada, profundamente ligado, não somente em termos biológicos, mas também pelas vias da experiência, em que passado e presente esbarram com o real e o imaginário. Através da série “Arturos” percebemos um povo que não somente compreende a natureza da luta, como também possui fé e garra em sua identidade coletiva com capacidade de sobreviver. “Arturos” transmite de maneira simples, através de um visual de grande beleza alquímica, o significado da religião e da cultura. O trabalho carrega em si contradições e polêmicas que a história, a religião e o poder com freqüência tentam negar.

Os trabalhos mais recentes de Eustáquio Neves sobre o futebol, produzidos em 1998, abordam, mais uma vez, as condições sociais em que as pessoas vivem. Futebol, “o belo desafio”, é jogado sob uma bruma urbana e a pressão da cidade. Cada pedaço de terra onde é possível jogar futebol está sendo ameaçado pela expansão urbana. Os jogadores disputam o que lhes resta de espaço até com roupas estendidas em varais. Os trens correm a uma distância mínima, enquanto torres de apartamentos se erguem e competem entre si na busca por um pouco de ar fresco. A sensação de claustrofobia é aumentada ainda mais pela recusa de Neves de nos deixar ver as imagens com clareza. Ao observar essa série de fotografias é impossível ficar apático diante da imundície e do asfalto literalmente “jogados” na nossa cara. Conforme a poeira vai metaforicamente baixando, os olhos sentem uma irritação causada pela crueza do cenário. “O belo jogo”, hoje um símbolo universal de harmonia, é transformado em horror. Os jogadores sufocados pela bruma representam a possibilidade distante de algo melhor. A série homenageia aqueles que tentam ganhar e ousam lutar contra circunstâncias sociais drásticas e sufocantes. Os jovens dessas imagens, em muitos casos, já são perdedores. As questões sociais e o preconceito garantem que suas vidas serão para sempre nada mais que uma série de batalhas.

Os trabalhos mais recentes de Eustáquio Neves mostram uma crescente inquietação. Agora, a temática relacionada a questões raciais, colonialismo e pós-colonialismo passa a ter um significado fundamental em sua obra. Ao chegar a Londres, durante o inverno de 1999, ele passou vários dias andando sem rumo no bairro de Brixton. Naquela época, disse: “Em Brixton, me identifico com os lugares, as pessoas e suas atividades cotidianas. Ao vagar pelo bairro, com o olhar crítico de um pesquisador e a surpresa de um estrangeiro, sinto uma sensação de pertencer”. Brixton é um dos bairros de Londres de maior população negra.

Percebe-se na afirmação de Eustáquio Neves que, para ele, ainda hoje não ocorreu uma reconciliação com o passado colonial, e que ele se sente perturbado com a vida que a população negra ainda leva na sociedade contemporânea brasileira. Desde o início, a questão da desigualdade encontra-se no cerne de sua atividade. Eustáquio Neves está totalmente consciente da relação entre os negros e a idéia de commodities, mercadorias. A própria existência de Eustáquio Neves, no Brasil, é um testemunho da natureza exploradora do comércio global. Não é de espantar, conforme sua obra vai amadurecendo, que temas como desigualdade social sejam recorrentes, volta e meia nos assombrando por intermédio dele. Eustáquio Neves, em si mesmo, vem a ser a representação do passado no presente. Ele vem do lugar que abriga uma re-memória, um lugar impossível de ser ignorado. É obrigado, pelo fato de ser negro e consciente das mudanças sociopolíticas, a tomar para si mesmo a questão da falta de ver por aqueles que não enxergam além da visão epidérmica esquematizada nos dias de hoje. “A maior questão do fato de ser negro,” lembra o professor Stuart Hall, “é que ela não vai embora.” Neves se vê obrigado, pela própria condição, a nos lembrar as circunstâncias em que ele se vê obrigado a viver. Este é um mundo dividido por raças.

Seus trabalhos a partir de 1999 revelam uma abordagem mais direta, cheia de confrontos. Hoje, ele mapeia temas-chave em sua obra. Começa a examinar e a desconstruir a objetificação e a exploração do corpo nego. Denuncia e expõe a publicidade por sua falta de respeito em relação ao corpo negro feminino. Documentos e artigos de jornais antigos anunciando a fuga de escravos são colocados lado a lado com anúncios de oferta de trabalho que excluem candidatos negros.

A iconografia do comércio escravo começa a emergir das imagens de Neves com uma presença poderosa e uma nova fé. Consegue atrelar a questão da violência do genocídio colonialista do passado à atual situação política internacional. Seu trabalho “Outros navios negreiros” (1999) adverte para as terríveis condições e a capacidade de se impor que a globalização possui sobre a maioria dos cidadãos do mundo e, ao mesmo tempo, acena para o fato de que o poder imperial foi construído, em grande parte, graças à exploração dos povos africanos.

Com isso, Eustáquio Neves nos pede para analisar o que de fato mudou e abre nossos olhos para as muitas formas da escravidão contemporânea.

Ele decidiu não ignorar sua condição de negro no Brasil. Ele não está preso em um debate neo-pós-conceitual. Sua obra é claramente direcionada e diretamente engajada com sua condição de negro, e demonstra que está ciente de que as inúmeras facetas e condições não podem ser expressadas sem o reconhecimento da necessidade de retomar diálogos ancestrais. Artistas como Rotimi Fani-Kayode, Albert Chong, Carrie Mae Weems e muitos outros compactuam com as preocupações de Eustáquio Neves. Weems, Chong, Fani-Kayode e Neves, cada um com sua maneira única, abrem a porta da memória para construir o agora, o hoje.

O principal desejo de Eustáquio Neves é reciclar o passado, transformando-o numa forma de memória que possa ser administrada para o futuro. Por isso não surpreende, após passar algum tempo pesquisando no Museu do Escravo, no município de Belo Vale, Minas Gerais, que tenha surgido nele a vontade de fazer com suas lentes o registro das brutais máscaras de metal utilizadas para castigar escravos. Neves resolve então fundir uma imagem da mãe à da máscara, criando um retrato de sua mãe à maneira “tradicional”, a ponto de obscurecer totalmente a figura materna através da máscara, silenciando-a, tornando-a um simples objeto. Na série “Máscara de punição” o fotógrafo consegue finalmente revelar quão pessoal é o sentimento da opressão sofrida. Essa obra, de diversas maneiras, é a mais violenta e deliberada de todas elas. Nela, Eustáquio Neves literalmente encerra a própria mãe em uma máscara.


( catálogo da Mostra Pan_Africana de Arte Contemporânea ) ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Mostra Pan_Africana de Arte Contemporânea": de 18 de março a 17 de abril de 2005 , p. 83 a 87, São Paulo, SP, 2003.