Entrevista Marcelo Machado, 2003

Entrevista concedida por Marcelo Machado ao 14º Videobrasil

Durante o festival estaremos discutindo as questões do deslocamento e dos processos nômades como imagens e ações emblemáticas da situação política e cultural contemporânea. Como você reflete isso no painel da arte eletrônica? Este é um tema de interesse em sua obra?

Os deslocamentos são uma marca da cultura contemporânea. A facilidade com que nos transportamos hoje só realça o desafio que os novos territórios chegaram a reapresentar no passado. Meu trabalho retrata uma pessoa que carrega a marca da superação desse desafio. Sua vida é ao mesmo tempo a busca de um novo espaço possível e a mostra da possibilidades e impossibilidades desse novo lugar. A perda da relação original de distância e a grande capacidade de nos adaptarmos aos novos territórios deve relativisar o espaço como fator determinante para as identidades culturais no futuro. Nesse momento talvez possamos estabelecer um novo sentido para a relação com o meio.

A relação entre arte e política é ao mesmo tempo rica e conflituosa. Como você percebe esta relação no caso específico do seu trabalho?

Olhar pode ser um ato politico. Mas o artista não determina os desdobramentos que a visão de um fato encerra.

As tecnologias da imagem e da informação participam de estratégias de controle e vigilância, sutis (ou não) e generalizadas. Diante desta realidade, qual seria , a seu ver, o papel da arte em contextos midiáticos?

Esclarecer, questionar, comprender, confundir.

No contexto sócio-político e cultural contemporâneo, as identidades locais se reconfiguram em tensão com os fluxos globais. Inserida neste processo, a arte eletrônica participa como um campo aberto à experimentação e expressão de novas formas de subjetividade. Como essas questões se manifestam em seu trabalho?

Sou casado há 20 anos como uma mulher chinesa. Um amigo fotógrafo encontrou uma senhora chinesa vivendo na periferia de São Paulo e me procurou para entender o que ela dizia. Eu não falo chinês. Mas eu sinto e entendo o que vejo. E no que vejo existe uma compreensão que muitas vezes supera a capacidade de falar, de comunicar com palavras. Com o video tento expressar essa (não) compreensão juntando as imagens de meu amigo fotógrafo com a música de alguém que não conheço e que tão pouco fala a minha lingua (Mahler). No encarte de um CD de Das Lied Von Der Erde havia uma tradução inglesa dos versos alemães originais que por sua vez eram a versão da poesia clássica chinesa que inspiraram Mahler. Eu fiz uma versão livre acrescentando aspectos do drama da sra Sun à esses versos. Depois pedi a um professor de chinês que devolvesse esses versos para seu idioma e gravasse a narração. Eles estão em off no video, que preferi não traduzir, deixando apenas o sentimento que a música de Mahler me provoca e que a imagem da senhora chinesa tão bem retrata. Assim se manifestam as tensões entre identidade local e fluxos globais. Na músca de Mahler, nas imagens da sra Sun, no video por mim editado. Assim experimento e busco expressar.

Atualmente, verifica-se nas culturas locais o desafio de reinventar as memórias pessoais e coletivas, sem deixar que elas se esvaziem frente aos fluxos de comunicação global. A seu ver, como este desafio se traduz nas experiências da artemídia?

Nos monumentos ingênuos de seu sitio, a sra Sun manifesta sua memória pessoal que é também uma parte da memória coletivia dos chineses no Brasil. Eles são feitos de concreto e o mato não deverá destruí-los tão facilmente. Nesse sentido é mais fácil que meu trabalho desapareça num mar de 'drop-outs' antes mesmo de se perder nas correntes do mar das comunicações globais.

No contexto de abordagem dos meios eletrônicos-digitais , interessa-lhe as questões do corpo? Como o corpo aparece em sua obra?

O corpo dobrado da sra. Sun Yuk Chin Fei aparece como ele é, dentro ou fora do dominio digital.

Associação Cultural Videobrasil

Depoimento Marcelo Machado, 2003

Depoimento de Marcelo Machado sobre a obra Das Lied Von Der Erde

Em Das Lied Von Der Erde eu procuro restabeler os vínculos pessoais com meu trabalho. Procuro os temas que façam sentido na forma como eu vejo o mundo ao redor. Tendo iniciado minha relação com o mundo áudio-visual quando sai da universidade em 1981, fui progressivamente me afastando do estímulo individual ou autoral como se costuma chamar. Do vídeo experimental passei para a produção independente de documentários e reportagens para a TV, depois para a televisão propriamente dita e finalmente para a publicidade. Essa progressão rumo à profissionalização foi também o afastamento dos conteúdos que faziam sentido na minha vida, universos de interesses e preocupações individuais. Quando decidi retomar o trabalho autoral, encontrei uma fita gravada por um amigo há 10 anos atrás. Eram imagens de uma senhora chinesa que mora na periferia de São Paulo. Essas imagens tinham me sido entregues por que minha mulher é chinesa e podia entender a mistura de idiomas que a sra. Sun Yuk Chin Fei fazia numa breve entrevista. Mas eu vi nessas imagens um retrato de um ciclo emblemático de vida. E junto com esse ciclo de vida um sentimento tão bem expresso na música de Mahler que eu ouvia na época. Guardei então a relação das imagens e da música no baú dos sentimentos. A edição que enviei ao VideoBrasil é a primeira etapa desse trabalho que estou continuando agora na forma de um documentário, não convecional. Na Estrada de Parelheiros, a velha sra Sun ainda vive. O amigo que me entregou as imagens, Carlos Ebert, se mantem fotografando e eu casado com uma mulher chinesa e ganhando a vida com o audio-visual. Vejo nas imagens da Sra. Sun todas questões relativas aos que trocam de continente, aos que se deslocam fisicamente buscando novas formas de vida. Quando olho o corpo curvado da Sra. Sun vejo o desenho que o esforço na luta pela sobrevivência provoca. Quando mantenho uma fita de alguém que sobrevive vendendo frutas na beira da estrada depois de ter construído uma fábrica no outro lado do mundo, deixo de comprar-lhe frutas, deixo de visita-la, deixo de conhece-la . Quando não tenho vinculo direto com os conteúdos do trabalho audio-visual estou perdendo o próprio sentido dessa forma de comunicaçao ou mesmo o sentido de se comunicar. Quando não entendo o que uma pessoa fala em outro idioma posso intuir sua intenção, posso dividir com ela um sentimento ou posso ainda construir novos sentidos que ajudem a compreender a mim e aos que estão ao meu redor.

Associação Cultural Videobrasil