Texto de apresentação 2003
Nomadismos: Homenagem a Waly Salomão dvd | Brasil-SP | 2003 Movido pela necessidade de ultrapassar os limites da língua escrita e de levar a prática poética a outros campos da criação, Waly Salomão (1944-2003) se aproximou das linguagens eletrônicas desde os seus primórdios no Brasil. Menos conhecidas que suas participações na música e nas artes plásticas brasileiras, as incursões do poeta pelo vídeo incluem momentos marcantes, como a colaboração com Carlos Nader, os poemas contaminados pelo repertório eletrônico e a performance “Bestiário Masculino-Feminino”, realizada no 12º Festival, em 1998. Waly transitou pelo circuito Videobrasil de 1996 até pouco antes de morrer, em 2003, quando ajudou a articular o conceito “Deslocamentos”, eixo curatorial da nova edição, como membro do Conselho Curatorial. Agora, com o DVD “Nomadismos: Homenagem a Waly Salomão”, a Associação Cultural Videobrasil tenta fazer jus à vitalidade de sua presença e à influência que exerceu no mundo do vídeo. Além de registros de suas performances praticamente inéditos no Brasil, o DVD reúne homenagens póstumas a Waly feitas por alguns dos mais proeminentes videoartistas brasileiros – Eder Santos, Lucas Bambozzi e Marcelo Tas –, e momentos históricos, como o encontro com o poeta paranaense Paulo Leminski, gravado pela produtora Olhar Eletrônico em 1983. Traz ainda as parcerias de Waly com Carlos Nader, os poemas que escreveu na fase de flerte com a arte eletrônica, as canções-chave de sua obra e registros de suas passagens pela TV e viagens – como a que fez a Beirute em 1999 para participar do Festival Ayloul de Arte Eletrônica, parte do processo de pesquisa que culminou na mostra “Narrativas Possíveis”, um dos eixos do 14º Videobrasil.
ASSOCIAÇÃO CULTURAL VIDEOBRASIL, "Deslocamentos - 14º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil": de 22 de setembro de 2003 a 19 de outubro de 2003, p. 214 e 215, São Paulo, SP, 2003.
Texto crítico 02/01/2004
No Líbano, emocionado e emocionante
Onde está Waly? 02.01.2004
Em Colônia, na Alemanha, recitando poemas entre engradados de galinhas vivas (a quem chama de Heidegger, Gadamer e Glauber Rocha) e pedindo esmolas aos engravatados que saem da Ópera. No Líbano, emocionado e emocionante. Nas ruas do Leblon, professando fé no marxismo (de Harpo, Chico & Groucho) e na poesia, juntando com Oswald de Andrade: “A idéia de inferno para mim é um lugar destituído de alegria, de humor e de amor”. Bebendo e caminhando em Paris na noite de 23 de março de 2003 – exatos 43 dias antes de morrer, aos 59 anos, no Rio de Janeiro. ‘A memória é uma ilha-de-edição’ Se, como queria ele, “a memória é uma ilha-de-edição”, nada melhor para celebrá-la do que o comovente “Nomadismos”, DVD concebido por Solange Farkas, da Associação Vídeo Brasil. A partir de linhas pinçadas do poema de mesmo nome, publicado em “Tarifa de embarque”, ela criou caminhos para entrar no turbilhão que era vida e obra de Waly Salomão, explorando entrevistas diversas, encontros, viagens, fotografias, vídeos protagonizados por ele e, também, tocantes homenagens póstumas de videomakers. No caos sonoro e visual, não-linear por princípio, uma tradução bem próxima do que foi este personagem arrebatador – e que por enquanto não tem circulação comercial. Para quem não o conheceu, uma excelente (e fiel) introdução. Para quem teve o privilégio de ser seu amigo, o melhor alento para a falta incomensurável que ele faz. ‘Eu não nasci para ser clássico de nascença’ Pelo acúmulo de materiais diversos, “Nomadismos” chega a ser didático ao dar conta dos múltiplos interesses de um poeta que, como ele mesmo diz em entrevista a Carlos Nader, sempre foi um borderline, descosturando as fronteiras da sanidade e das artes como um todo. Pois a ele interessava, tanto quanto a literatura, a música, a filosofia, a performance, a teatralidade de seu cotidiano e, também, os usos que conseguia fazer dela. Fronteira, nomadismo, deriva: é impossível classificar Sailormoon. ‘Já não me habita mais nenhuma utopia’ “Não venha com essa de o sonho acabou”, berra ele, saindo de dentro de um enorme vaso de plantas no Baixo Leblon. Era o anti-nostálgico por excelência, como se percebe nos trechos editados de “Mel do melhor”, programa que a TVE-Rio exibiu como homenagem póstuma. Em sua fala gritada, a firme convicção, poundiana, de que “futuro” só faz sentido se conectado no passado, de que criar o novo é transformar a tradição, dialogar com as heranças diversas. Com radicalidade surpreendente, levou esta certeza aos extremos, dialogando com tudo, destrambelhando o tempo, os espaços, as hierarquias da cultura. Sem populismo. Sem esnobismo. ‘Com que barranco ergui meu banco de dados?’ São Paulo, 1983. Waly Salomão e Paulo Leminski gravam uma entrevista para a TV. Ambos parecem saídos da década anterior. A conversa gira em torno das tendências da poesia, do futuro da arte. Leminski mostra-se horrorizado com a sociedade de imagens, a onipresença da mídia. Propõe, com charme quixotesco, interrupções, boicotes, recusas. Waly quer se lambuzar, diz que o hippismo foi uma canoa furada. “A morada do ser poeta é o espaço eletrônico, hoje”, afirma. Faz o elogio da tecnologia, vê o vídeo, olho de lince, como uma nova renascença. A percepção deve ser desregrada, sempre, mas técnica também dá barato. ‘O gozo da fluidez do momento/Sem congelados’ Dois belos vídeos de Carlos Nader são inspirados/conduzidos por Waly. “Viagens na fronteira” e “Trovoada”. Em ambos, o amálgama perfeito entre personagem e autor, entre vida e obra. No primeiro, o poeta viaja até a fronteira do Brasil com a Colômbia para relativizar, imerso em águas, a própria idéia de fronteira – como não poderia deixar de ser. No outro, aparece falando sobre sua percepção, que ao ver alguém já vê muitos, os que já foram e serão, a intuição que constrói e desconstrói certezas sempre passageiras. ‘Me segura qu’eu vou dar um troço’ Num depoimento emocionado e bem humoradíssimo, Solange Farkas e Carlos Nader lembram da experiência divertidíssima de conviver com Waly. Os escândalos na rua, a total falta de pudor em aproximar-se das pessoas, agradá-las, carinho desmedido e sem medo. Lembram detalhes dos últimos tempos como, por exemplo, o fascínio de Waly por seu motorista na Secretaria Nacional do Livro, a quem só chamava Sidney Poitier. Na fala dos dois, os detalhes minuciosos de uma personalidade – da simpatia amalucada ao hábito de telefonar aos amigos de manhã cedo e, sem dizer alô, continuar uma conversa que havia inicado em algum lugar, em algum tempo ou espaço. ‘Não sou eu quem dá coice ferradurados no ar./ É esta estranha criatura que fez de mim seu encosto.’ Ainda neste depoimento, Solange e Nader afirmam que, apesar de acompanharem Waly em tantas viagens (reais e metafóricas) nos últimos anos, sempre filmando-o, é quase impossível representá-lo com fidelidade. Para os dois, o overacting consciente sempre fez dele um enigma. “Nomadismos” desmente um pouco essa tese pelo seu belo excesso de sons, imagens, palavras, música, poesia. “Convive-se com uma criatura sem imaginar sequer de que reino provém”, definiu-se ele, lindamente, em “Post-Mortem”.
PIRES, Paulo Roberto. "No Líbano, emocionado e emocionante". Disponível em: