Ensaio Eder Chiodetto, 07/2009
Editor de mundos
Do cruzamento improvável de conhecimentos adquiridos num curso técnico de química industrial e nas aulas de violão clássico, Eustáquio Neves lapidou seu talento original para manejar imagens e metáforas, transfigurar sentidos, justapor realidades, invenções e memória. Desde 1987, quando começou suas pesquisas em seu primeiro laboratório em Belo Horizonte, certo inconformismo e atitude transgressiva permeavam a representação que elebuscava para expressar seu universo pessoal e subjetivo.
Caos urbano (1992), sua primeira série, já apontava para a melhor tradição de artistas, que, através da história, passaram a pensar a fotografia tal qual ela sai da câmera como uma matéria bruta que necessitaria de intervenções para se ajustar à representação pretendida. Uma forma de transfigurar o momento fotográfico, expandindo suas potencialidades simbólicas.
A forma de pensar o processo de obtenção, intervenção e edição de imagens, seja nas séries fotográficas ou em sua produção mais recente, que tem gerado uma seleção instigante de trabalhos formatados em vídeo, traz à tona um editor de mundos. Olhos, coração e mente na busca obsessiva – ainda que produzidos na calma e no silêncio de quem optou por viver fora dos grandes centros – de significados para o fluxo interminável de informações aque estamos submetidos na contemporaneidade.
O caminho labiríntico pelo qual ele vai tratar de questões tão caras à sociologia brasileira, como o futebol e os remanescentes dos escravos, nas séries Futebol (1998/99) e Arturos (1993/97), respectivamente, mostra um artista complexo com extrema habilidade para verter em atmosferas,texturas e cores difusas sua consciência crítica e histórica.
Não se trata aqui, no entanto, da tradição da denúncia da fotografia documental. Tais imagens não nos impelemnecessariamente a uma reação diante dos fatos narrados. Ao esgarçar a película fotográfica até o limite da gravura e da pintura, Eustáquio justapõe e constata o estado bruto das coisas, permeando-a com uma reflexão que surge em tintas nostálgicas, quase melancólicas. Os enigmas contidos em suas muitas camadas dialogam não com a razão voraz de quem consome as imagens midiáticas do dia a dia, mas com uma percepção mais aguçada que é convocada tão logo nos deparamos com as atmosferas espessas e lúdicas por ele inventadas.
Tecnicamente, parte dessa magia contida no trabalho surge da capacidade do artista emimpregnar suas imagens complexas com diversos símbolos que se justapõem, criando camadasem profundidades distintas. Tal estratégia óptica obriga os olhos de quem as perscrutanão simplesmente a “escanear” as imagens lateralmente, mas a realizar uma prospecção para dentro dela. Uma forma eficaz de trair a letargia dos olhos do homem contemporâneo, fustigados pelo excesso de imagens e, ao mesmo tempo, excitar a íris e a percepção paranovas possibilidades de abordagem.
Mas, no princípio, havia a música. E a presença delana vida do artista pedia ritmos, composições, frases sonoras, novas combinações. Orquestrar a oferta infinita de sons, imagens e informações que surgiram de forma abrupta coma internet foi uma necessidade natural de quem se mantinha conectado tanto às referências históricas do seu tempo quanto às novidades que surgiriam para modificar de forma incisiva as trocas simbólicas entre as pessoas.
Assim surgiu Abismo virtual, quevaleu a Eustáquio Neves o Prêmio Videobrasil WBK Vrije Academie no Videobrasil em 2007.De suas imagens autorais, o artista passou a estabelecer conexões com imagens enviadas por outras pessoas, capturadas no YouTube e mescladas com elementos estranhos às novas tecnologias, como fotografias analógicas, experimentações de laboratório etc. Seu universo de colagem experimentou um passo diferenciado ao incorporar outras autorias, levando-o a assumir de vez sua porção de editor, que, como um disc jockey, escreve frases utilizando palavras de diversas pessoas e origens.
Atitude artística de viés fortemente contemporâneo que, contra a pasmaceira e a tendência anestesiante da geração de informação sem reflexão possibilitada pelo acesso maciço às novas tecnologias, segue no fluxo contrário ao questionar e conferir outra lógica às imagens vazias, de geração quase espontânea. Subversivamente o artista ressignifica essas imagens, conferindo-lhes sentidos que escapam a elas próprias ou às intenções primárias de seus autores/ autômatos.
As imagens, sobretudo dos amadores, surgem da necessidade de certificar a existênciado seu espaço-tempo, de retificar suas memórias, de deixar rastros. Mas o fato é que grande parte dessa produção morre sem audiência, sem chegar a ganhar um real sentido na sociedade ou mesmo dentro do meio em que foram geradas. Abandonadas em memórias virtuaisque agonizam à espera de edição, essas imagens invariavelmente são esquecidas em pastasde computadores fadadas a serem invadidas por vírus, a se converterem em bytes corrompidos, ao apagamento.
Essa iconografia, ao contrário da ideia de se converter em instâncias perenes da memória, motivo que levou à sua criação, se transforma rapidamente em um atestado da amnésia coletiva. Fotografar, gravar, esquecer. Este é o circuito paradoxalque conflagra a maior parte da produção de imagens contemporâneas.
Ainda que a amnésia diante de tanta informação seja uma dádiva, artistas como Eustáquio sabem buscar referências históricas no passado para pensá-las sob a luz dos novos tempos. Ao colocar a memória coletiva em perspectiva, o artista realiza um trabalho perspicaz no recente vídeo Post No Bill, realizado com imagens captadas em Lagos, na Nigéria.
“Os ricos de hoje na Nigéria são os descendentes de escravos no Brasil. Seus antecedentes, ao retornarem do regime escravocrata, dominaram o comércio local. Terem se percebido como mercadoria durante o período da escravidão deu a eles a chave para que entendessem o jogo do comércio”, diz o artista.
Partindo desta constatação assombrosa, ele constrói uma espécie de sonata com colagens dos ruídos do trânsito infernal de Lagos, somados à ironia de cartazes que são colados com a expressão “Não cole cartazes”. Imagens captadas e/ou transformadas, em baixa resolução, fragmentam a tela com uma trama de pixels que reverbera no formato dos próprios cartazes que, colados num painel, contribuem para a restauração do silêncio.
Nesse mosaico em que se aglutinam informações do passado que ganham novas conotações no presente, como a história dos escravos que, de certa forma, se beneficiaram no futuro do fato de terem sido reduzidos a mercadoria, Eustáquio faz um cruzamento muito pertinente aproximando esteticamente elementos de linguagens mortas, como chama; corrompendo a limpeza e a perfeição das novas mídias com tecnologias já superadas.
De novo são histórias que pedem para ser decifradas não na sua ilusória beleza de superfície, mas sim nas tramas envolventes, nas fissuras dissonantes criadas pelos pixels que explodem na tela revelando a carne que constitui a imagem e se expande para seus significados históricos, antropológicos, estéticos.
Fotografia, cinema, pintura, gravura, música, ritmo, reflexão, história coletiva e memória individual. Misture tudo num laboratório com químicas e transforme numa partitura para violão clássico. Receita sem cópiaspossíveis de Eustáquio Neves.
Entrevista 07/2009
Outros navios, que você criou para a 1ª Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea (MAM-BA, 2005), é sua primeira obra em vídeo. Como se dá a passagem para a imagemem movimento, no seu trajeto?
É verdade que comecei a trabalhar com vídeo a partir daí, mas meu interesse pela imagem em movimento já vem de longa data. Fotografo pensando em cinema. Na Mostra Pan-Africana, me senti à vontade para fazer isso, e as condições que me foram oferecidas facilitaram essa escolha.
Em Dead Horse, você propõe uma reflexão sobre foto e cinema, a partir da série de Muybridge e transpondo essa proposta para os blockbusters contemporâneos. Como você vê a relação entre fotografia e cinema nos dias atuais?
Dead Horse é um vídeo feito a partir de uma série de fotos que deu origem à imagem em movimento. O cinema se inova, entre outras coisas, nas tecnologias, na narrativa e, como não poderia deixar de ser, na fotografia, que, quando parece que tudo se esgotou, nos traz algo muito novo. Isso se você estiver falando de fotografia de cinema… A fotografia como uma arte paralela ao cinema, eu vejo, se aproxima cada vez mais da narrativa do cinema – na forma de editar e nos suportes.
Seus registros fotográficos se caracterizam, entre outros elementos, por apresentarem intervenções físicas e químicas. De que maneira o fato de ser graduado em química influenciou na sua criação artística?
A graduação em química acredito que não tem tanto a ver. Mas o meu interesse pela experimentação, que me levou a fazer química, esse, sim. Em tudo o que produzo há uma inquietação que me leva a querer romper com o modelo tradicional; acho que é assim com todas as pessoas que trabalham com criação.
Post No Bill foi realizado na Nigéria, um país que guarda muitas conexões com o Brasil, especificamente com a comunidade negra brasileira. Como surgiu a ideia de fazer o vídeo e que elementos a Nigéria aportou para o vasto arsenal simbólico de que se compõe o seu trabalho?
Eu sempre trabalhei com a ideia da reorganização do caos e do acúmulo de informações. E na Nigéria há uma espécie de organização dentro de um caos aparente que torna o resultado do meu trabalho um simples recorte da realidade daquele lugar. Não tem muito o que fazer, já está tudo pronto. Mas sobretudo o elemento humano em seu cotidiano foi o que mais contribuiu para o resultado do meu vídeo Post No Bill.
Você já expôs diversas vezes, em mostras individuais e coletivas, na África. Ter estado no continente modificou sua visão a respeito das culturas, vivências e realidades negras brasileiras que você desde sempre retratou em seus trabalhos?
Eu descobri não só na África, mas nos Estados Unidos, por exemplo, onde passei uma temporada em residência junto a uma comunidade negra, que existe uma ligação muito forte entre a África e a diáspora, mesmo em pequenos gestos, em qualquer parte do mundo. Eu estou citando isso porque, no dia do aniversário da pessoa que me hospedou durante a minha residência naquele país, ele recebeu um telefonema logo pela manhã da mãe, que vive no Alabama. Antes de qualquer outra manifestação, ela começa a cantar uma música para ele. Minha mãe também faz isso comigo em todos os meus aniversários.
Voltando à pergunta, acredito que a comunidade negra brasileira ainda precisa crescer muito em termos de identidade como negros, como brasileiros, para poder romper desigualdades que se arrastam ao longo de não sei quanto tempo.
A presença de sua mãe, tanto na série de fotos em que ela aparece quanto como referência, é notável em seu trabalho. Como o universo familiar, a infância em Minas Gerais, a realidade dos negros brasileiros modelaram a essência do seu trabalho?
O meu trabalho é sempre permeado de lembranças, boas e ruins. Aprendi muito com a minha mãe, a resistir e a acreditar. A realidade é uma coisa da qual não dá para fugir. Tenho meu trabalho como uma forma de enfrentá-la.
Em quais projeto você está trabalhando atualmente?
O vídeo Dead Horse foi contemplado no Filme em Minas do biênio 2008-2009, é um work in process e vai poder ser visto na íntegra até o final do ano. No momento, continuo trabalhando no meu material feito na Nigéria para a edição de um segundo vídeo cujo nome eu ainda não sei, tampouco onde vou mostrá-lo.
Associação Cultural Videobrasil. "FF>>DOSSIER 045 Eustaquio Neves". Disponível em: >http://www.sescsp.org.br/sesc/videobrasil/site/dossier045/ensaio.asp>. São Paulo, julho de 2009.
Biografia comentada 07/2009
Patrimônio Cultural da Humanidade, terra de Juscelino Kubitschek e de Chica da Silva, Diamantina, lugar onde vive e trabalha Eustáquio Neves, é um manancial de história a circundar o quartel-general do artista mineiro. As montanhas, a arquitetura das ruas d cidade e seu passado cravejado de jóias, mas também de conflitos e transformações, emolduram à perfeição o ofício do fotógrafo e videoartista: perscrutar, na paisagem humana que se reinventa a cada dia, os laços que mantêm coesos a identidade, os valores e a memória de um povo.
Nascido em Juatuba, a 45 quilômetros de Belo Horizonte, Neves se formou em química em 1980, mas o interesse por experimentar apenas sobrevoou as pipetas para instalar-se definitivamente no território artístico. “Em tudo o que produzo há uma inquietação que me leva a querer romper com o modelo tradicional; acho que é assim com todas as pessoas quetrabalham com criação”, afirma.
Da paixão pela experimentação nasceram ensaios fotográficos marcados por intervenções físicas e químicas que trafegam entre passado e presente, comoBoa aparência, sobre a forma velada de racismo que se encontra nos anúncios de empregos, ou Encomendador de almas, em que o fotógrafo capta, para além do palpável, a atmosfera impregnada de reminiscências, preceitos e conhecimentos ocultos em torno de Seu Crispim, habitante do quilombo do Baú, que tem como missão encaminhar as almas dos mortos.
Tradições cotidianas de inspiração africana que permanecem vigentes fora do Brasil também ocuparam o olhar do artista. Em 1999, Neves foi bolsista no Gasworks Studios, onde realizou residência com suporte da Autograph, associação de fotógrafos negros em Londres. Desenvolvido nesse período, o projeto Navio negreiro se nutriu, entre outras vivências, das peculiaridades dos habitantes de Brixton, em suas atividades rotineiras, bairro pobre de Londres, lugar onde o artista conta haver experimentado sensações de familiaridade, “sentimento de pertencimento”.
Em terras norte-americanas, novas identificações. Chamou a atenção de Neves o fato de, mesmo em pequenos gestos, perceber similitudes entre costumes de comunidades negras brasileiras e dos Estados Unidos.
Na África, o artista já realizou mostras individuais em países como Mali, dentro do 5º Rencontres de la Photographie Africaine, em Bamako (2003), e Moçambique, no ano passado. Neste ano, desenvolveu o vídeo Post No Bill, ambientado em Lagos e inspirado no recorrente aviso de “Não colar cartazes” que circunda a cidade nigeriana. Lá também ministrou o workshop de vídeoLinha imaginária.
Desde o início da carreira, Neves conta sempre haver tido presente o cinema na elaboração de seus projetos, mesmo quando se tratava de fotografias. “Fotografo pensando em cinema”, diz. Do pensamento à ação, decidiu se embrenhar pela imagem em movimento em 2005, quando apresentou Outros navios, sua primeira videoinstalação, construída com imagens da própria mãe, na 1ª Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, em Salvador. Em 2007, foi um vídeo, e não uma foto, que lhe rendeu o Prêmio Videobrasil WBK Vrije Academie, de residência na instituição holandesa, concedido durante o 16º Festival Internacional de Arte Eletrônica SESC_Videobrasil (2007). A obra premiada foi Abismo virtual, reflexão sobre intimidade e mídias digitais.
Em Haia, onde realizou sua temporada de estudos, desenvolveu o projeto Dead Horse, maisum vídeo – desta vez diretamente ligado à sua fonte inspiradora, o cinema. O novo trabalho, em fase de conclusão, contempla a série de imagens The Horse in Motion, realizadas por Eadweard Muybridge no final do século 19, e os sucessos de bilheteria contemporâneos.
Referências bibliográficas
Site da 1ª Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, em Salvador, onde, em 2005, Eustáquio Neves mostrou sua primeira videoinstalação, Outros navios.