Ensaio Lucas Bambozzi, 20/09/2007
Miradas borradas
Este texto sobre Claudia Aravena deveria ter sido escrito por Guillermo Cifuentes. Mas nosso maior e tão especial amigo em comum morreu sem o fazer, em maio de 2007. Isso talvez tenha deixado um grande vazio entre as aproximações que poderiam ser estabelecidas entre seu trabalho e o de Claudia. Tais aproximações se evidenciavam frontalmente, em opções estéticas, estratégias narrativas, abordagem política, sensibilidades, humores e intimidades.
Assim escrevo, sem vestígio de qualquer psicografia, mas sem poder contudo evitar os vestígios do trabalho de um ‘no do outro’ e vice-versa. Para além de terem estudado juntos, em algo mais que a parceria no coletivo A Cuerda, eram belas as interferências, as trocas, a contaminação mútua, a alternância de foco, entre identidades, de ‘um em outro’.
Assim, sem poder separar o que na memória mistura afetivamente o ‘um no outro’, vou buscando recompor um retrato rápido, um instantâneo diriam, que possa porventura se estender a uma certa geração, da qual também faço parte de alguma forma.
Minha primeira incursão no trabalho de Claudia aconteceu com Miradas Desviadas (1992). Ali tomei conhecimento de uma latinidade cuja sensibilidade ainda não conhecia, vinda de uma cena chilena imersa em diários de viagens e relatos pessoais ornados com sobreposições de layers, fusões, slow motions, declarações aveludadas, vozes em tom confessional, locações parisienses e outros ‘acentos’ considerados tipicamente franceses. Os realizadores chilenos cultivavam até então uma proximidade explícita com a França, resultado de mais de uma década de trocas, nem sempre equilibradas (quase promíscuas?), entre os países, através do Festival Franco-Chileno de Videoarte.
O fato é que esse tipo de vídeo produzido no início dos anos 1990 nos tocava de fato, e em Claudia e Guillermo tínhamos os melhores exemplos de uma narrativa transandina que sugeria arrebatamentos pela visualidade, atitude e destreza de linguagem.
Trabalhos que sucederam Miradas Desviadas, como Estáción Terminal (1995), berlin: been there/to be here (2000) e lugar común/common place I (2001) são re-construções de identidades que nos tomam por uma espécie de encantamento audiovisual, que alcançam, sim, o poder de nos fazer emocionar, mesmo sem cantilenas românticas, atores ensaiados, produções sofisticadas ou planos-seqüência virtuosísticos. Me refiro à perseguição de uma sintaxe que desde os anos 1990 se lança no desafio da construção de sentido, da invenção narrativa, da conjugação de elementos do texto escrito, da estrutura econômica da poesia, quase em estrofes. Falávamos, desde então, num formato através do qual se compreenderia uma necessidade de expressão. Haveria a busca de uma síntese, que seria o indício de uma experiência audiovisual diferente, parente muito próximo do curta-metragem, mas sem os arremedos de seus clichês mais correntes, atravessado por viagens de reconhecimento, tingido do tal vídeo francês, em tudo pertinente naquele contexto chileno. Pensávamos mais consensualmente em uma situação cinemática de sensações e conceitos, em que, ao largo da busca da emoção tão cara ao cinema, se perceberiam conexões de idéias, vidas sendo vividas intensamente, desabafos sinceros e desafios sendo enfrentados com a câmera em punho. Essa geração inventava, para além do registro, sua própria história, como forma de crer em um futuro, que em tudo se mostrava nublado e sem muitas perspectivas.
Foi convivendo ao longo dos anos 1990 com realizadores como Claudia e Guillermo, balizados por pensadores como Nestor Olhagaray e Jorge La Ferla (inclusive tendo os franceses Robert Cahen, Alain Bourges e Jean-Paul Fargier como assíduos contrapontos), que aprendemos mais profundamente as diferenças culturais (evidentes!) e passamos a identificar melhor as possibilidades de um diálogo autêntico entre vizinhos sul-americanos. Pelo menos entre nós, afinal elementos bastante legitimadores das manobras desse circuito latino, superamos talvez as balelas dos discursos de intercâmbio imposto institucionalmente e nos enxergamos menos ingênuos. Foram trabalhos como os de Claudia e sua procura incessante por seu lugar no mundo que ajudaram a crer que o nascimento de uma linguagem para além das convenções pode incluir também a imagem como divagação e formas mais etéreas de comunicação, sem nos isentarmos do peso de nossas ditaduras e das várias formas de desentendimento cultural – algumas ainda hoje persistentes.
No caso específico de Claudia, não seriam apenas as idiossincrasias latino-americanas que a moveriam, pois as questões de identidade em seus vídeos passaram a ser refletidas em um desdobramento amplo deste tema, como por exemplo a partir de sua ascendência Palestina em trabalhos como Beitjala (2003), Greetings from Palestina (2004) e Out of Place (2005); a partir de seu lugar-sem-lugar como imigrante em Berlim, em projetos como been there/to be here (2000) ou Common Place I e II (2001), e a partir dos medos contemporâneos comuns a todas as culturas, tema retratado de forma potente em Fear (2007). São projetos para toda uma vida, para o reconhecimento do que pode vir a ser a identidade a partir de sua negociação com o contexto em que se vive.
Memórias e efeitos reversos
As linguagens são mesmo ‘regiões’ incertas, que nos sugerem andar acompanhados, pelo risco da escuridão. Claudia e Guillermo andavam juntos. Em seus vídeos, a memória muitas vezes substituía o movimento, e o espaço comum ia sendo desenhado de muitas formas. É como pensar: uma vez isolado, me acostumo com a visão turva, entro em defasagem, trabalho com a sintaxe atropelada, me erro no contexto. No âmbito do sozinho, somos donos de toda degeneração e dúvida que nos assola. Inclusive das imagens que criamos. Ver-se no outro é forma de averiguar desvios, mas também sanidades. Claudia e Guillermo sabiam que as bases efetivas de um processo colaborativo são muito frágeis. Talvez por isso se apoiassem mutuamente. Um no outro, ambos nas obras que criaram.
O outro, não apenas o duplo, mas ‘o mínimo eu’ como um triplo, apoiado na obra-vídeo (a compreensão de si).
E foi entre as instabilidades das novas mídias que Claudia se reafirmou, estreitando-se no vídeo, essa mídia hoje ‘banal’, diriam alguns. E desde That is not a Loop, that’s Real Time (1999) buscou também no espaço das instalações um amparo para a vertigem dos efeitos retóricos em torno das novidades das mídias. Foi buscar logo no espaço, que se esvai na visão dos filósofos da aceleração e virtualidade da imagem, uma âncora para se salvar no mar de incertezas.
Processos são obras latentes. O.k., nem sempre. Apenas em casos especiais. Assim Claudia fez do Projeto Palestina (2003-2005) um processo-obra, um reconhecimento com validade a perder de vista. Os processos fortalecem as certezas, as definições de linguagem parecem descansar momentaneamente.
Em Fear/Miedo (2007), Claudia acerta em cheio ao falar do indizível. Difícil não se impactar pela construção, uma vez mais estruturada em um repertório de memória arquetípica, agora coletiva, em que as vísceras agora são expostas mais pelo que há de universal do que pela intimidade revelada. Um vídeo para ser revisitado.
Existências ilustradas
Em uma recente conversa com Claudia, chegamos ao risco de concluir que somos todos ilustradores de escritos. Em muitos textos e contextos, nossas obras servem apenas como ponto de partida ou como referência de passagem para ‘statements’ de curadores, críticos e festivais. Servimos a alguns propósitos bem específicos, às vezes fugazes, às vezes mais duradouros, em ilustrações que pretendem outra coisa para além de nossos trabalhos, em catálogos de páginas muito numerosas, em oceanos de muitos nomes, títulos, tendências (continuo detestando essa palavra!). O risco da conclusão está em assumir que o que fazemos apenas importa quando se junta a interesses maiores, de outras estruturas, que nossos trabalhos muitas vezes sugerem, mas não alcançam o mérito.
Pois bem. Essa produção é a base de caminhos em que hoje trilham outros realizadores, sejam conscientes ou não dos vôos anteriormente alçados. Guillermo morreu sem que houvesse justiça a seu brilhantismo. São as conhecidas vias tortas do reconhecimento e da estratégia não condizente com as regras vigentes. Sobra a obra, talvez com aquele sabor da amargura que dispersa qualquer solidariedade. A forma como circulamos, bem ou mal, é também, inevitavelmente, nossa obra. Em resposta, por reação, por conseqüência, por fatalidade ou por poesia.
Aqui caberia um recurso de narrativa, tal como nos vídeos de Claudia: a sua palavra na voz de outro, a voz do outro na própria palavra. Problemas de representação, do falar de si, da própria cultura e da falta de pertencimento a uma cultura.
Claudia nos fala de espelhamentos. O ‘eu na multidão’. Você entre os vários. Nós em nosso estranhamento (novamente temos retratos, portraits, de uma família: novamente Guillermo Cifuentes, Robert Cahen, Alain Bourges, Patrick de Geetere, Chico de Paula, Ivan Marino, Arturo Marino, Alejandro Restrepo, Carlos Nader, Inês Cardoso, eu próprio, e muitos outros que me ocorrem por caminhos tortos); mais do que falar de uma geração definida por datas de nascimento, refiro-me a certas insistências e convicções de linguagem.
Como o contexto atual afeta a produção dessa gente. Como o contexto exclui ou os aceita? Há que se reinventar, com ou sem drama.
O quanto de América Latina, de Chile, de mundo árabe, de Palestina, de Alemanha, de Berlim existe em Claudia? O maravilhoso reside em buscar saber, em descobrir, vendo, assistindo, ouvindo, se deixando emocionar pelos trabalhos de Claudia, mas não os tomando por ilustração.
(1) O Festival Franco-Latino-americano de Videoarte, em sua 14ª edição, se transformou em Festival Franco Latino-Americano, mas a entrada de países como o Brasil, Uruguai, Colômbia e Argentina parece ter tornado o festival oneroso para os cofres franceses e pouco proveitoso em termos de influência cultural eurocêntrica, afinal o evento sempre foi promovido pelo Ministério das Relações Exteriores da França. Mas o que importa é que observávamos um curioso circuito entre países vizinhos que há anos vinha sendo propalado em todos os meios, mas que só a partir de então passou a existir de fato. através de festivais como o Franco-Latino-americano, o Festival do Cone Sul e, naturalmente, o constante intercâmbio viabilizado por partes da programação do Videobrasil.