Ensaio Tom Morton, 03/2006
Roger
É uma história simples, uma história de amor, embora tenha, como todas as histórias de amor, seus tormentos, seus movimentos para o lado e para trás.
Roger (2004), de Federico Lamas, começa com as palavras “Aquilo que nos impulsiona nos inspira e desfaz nosso espanto” rabiscadas em uma folha de papel pautado que parece ter sido arrancada de um diário, ou de um caderninho guardado à cabeceira da cama para anotar sonhos ao acordar. Esse papel (pontilhado por uma constelação de corações e asteriscos, como se o amor fosse algo que existisse em uma infinidade de notas de rodapé) habita toda a tela e parece fixado a ela por uma fita adesiva bege, em uma possível alusão ao modo como um editor de cinema corta e cola os frames de um filme. Após uma seqüência de créditos, mais uma vez escritas em uma caligrafia rabiscada em um caderno de anotações manchado e cheio de garranchos, vemos as palavras “Ela está indo embora”, que dão lugar a cenas de um homem e uma mulher discutindo. Não podemos ouvir o que estão discutindo (a trilha sonora estridente de Lamas se incumbe disso), mas as palavras “Olhe para mim”, novamente escritas em um pedaço de fita que parece ter sido usado para colar os trechos do filme, sugerem uma história de incompreensão, de recriminações entre dentes e de olhares esquivos. Todos conhecemos esses momentos, quando o amor começa a ficar azedo, se transformando de algo que preenchia o universo em algo que se parece com um vazio cósmico, e todos sabemos o que acontece depois.
O homem (sua camiseta ficando vermelha de raiva) pega a mulher pelos ombros, sua paixão cada vez mais próxima da agressão; seu gesto, destinado a trazê-la mais perto, a repele. As palavras “Ela vai embora” aparecem em um pedaço de fita adesiva, e ela vai embora correndo, a câmera seguindo seus movimentos quadro a quadro, como se seu amor ferido exercesse uma atração gravitacional do tamanho do planeta inteiro sobre a narrativa. Finalmente, ela pára para apanhar alguma coisa em sua bolsa (um batom? um celular?) e percebemos que, apesar da distância que parece ter percorrido em relação a seu par, toda a sua viagem aconteceu diante do mesmo cenário – um muro sujo no qual vemos uma forma circular como a lua. Começamos a pensar nos desenhos animados e na maneira como eles repetem, por exemplo, os mesmos cinco ou seis segundos de um cenário de deserto em uma cena de movimento para economizar dinheiro em honorários pagos aos animadores. Começamos a pensar no conceito de viajar sem sair do lugar, e no que isso tem a ver com amor.
Subitamente, a câmera começa a acelerar para a direita, voltando na direção do homem. Surgem as palavras “Ela me exxxcita” (com o “x” triplo talvez indicando conteúdo erótico) e, tendo tomado uma decisão silenciosa, ele corre em direção a ela, com o cenário repetido pulsando atrás dele. Mas corre tão rápida e inutilmente que a exaustão toma conta dele e ele cai no chão. Um cachorro preto entra em cena, fareja o homem e, sentindo o cheiro da desilusão amorosa em sua pele, parte correndo em busca da mulher, com o intuito, insinua Lamas, de reuni-los, como um emissário de Vênus ou um avatar das segundas chances. (Vale notar, aqui, que cães pretos são símbolo da depressão, e que também podemos interpretar esse cachorro correndo como a encarnação de uma tristeza que parte para a ação). O cachorro chega até a mulher, surgem as palavras “um deles diz alguma coisa”, de significado ambíguo, e o cão corre de volta para o homem. Desta vez, no entanto, feixes de luz iluminam o cenário repetitivo, como se a graça divina ou uma expressão sobrenatural do perdão feminino abençoasse o mundo e tudo o que ele contém. O cachorro chega até o homem, ele se levanta, e surgem as palavras “Tenta de novo. Vamos lá”, depois das quais o homem sai de cena pela direita – direção contrária àquela da qual o cachorro havia vindo. O filme termina e ficamos sem saber se o casal jamais se reconciliou, se a magia amorosa do pombo-correio canino surtiu efeito. No entanto, algo me diz que sim. A saída do homem o levará em uma nova direção, para longe do cenário repetitivo e de suas insinuações de discussões circulares – será esse o caminho certo para a reconciliação? Mas quando o homem sai de cena ele sai também do filme, abandonando, assim, as convenções narrativas dos romances cinematográficos, nos quais os casais se separam e, em seguida, são reconciliados por algum deus ex machina, ou por um movimento dos planetas ordenado por Deus. O verdadeiro feito desta obra é o fato de que Lamas deixa a possível reconciliação do casal em suspenso. O artista nos pergunta: “Vocês acreditam nos filmes?”. E é essa crença (ou sua inexistência) que determina o modo como esta história termina na vida após a morte de nossa imaginação. Como insinuam os frames manchados com fita adesiva de Roger, nós – os espectadores – somos os verdadeiros editores de qualquer história. Podemos cortar, colar e recriar o mundo como quisermos.