Ensaio Enrique Aguerre, 08/2007

O que você vê quando me vê?

Quase desde seu início, o vídeo como linguagem – e também como suporte – se preocupou muito em tentar definir sua especificidade em relação aos outros meios de criação artística, buscando a sonhada maioridade. Essa operação, que envolveu a maioria dos nomes do santuário videoartístico, terminou em um estrepitoso fracasso, coroado, por um lado, pela rápida assimilação do rebelde novo meio por parte das instituições, com direito a “musealização”, e, por outro, pela chegada do vídeo a um estado de máxima espetacularização, entre os orçamentos milionários e as tecnologias de ponta. De sua natureza antiarte, já não restaria praticamente quase nenhum postulado de pé.

Esse diagnóstico, que poderia ser visto,a priori, como uma espécie de reflexão desencantada, tem seu lado positivo e nos permite, por sua vez, novas leituras a respeito das relações do vídeo com os meios massivos de comunicação, desde a tradicional televisão até a internet. Ele libera, de tacada, os artistas que elegem o vídeo como ferramenta de criação contemporânea para se concentrar nos usos da imagem a partir de uma posição claramente crítica.

A artista visual Paula Delgado é um exemplo evidente da nova geração de criadores que tomam posição frente ao sedutor imaginário que nos incutem os meios de comunicação, questionando, em seu caso, as estruturas impostas sobre o feminino e seus múltiplos estereótipos.

O primeiro trabalho de Paula em vídeo foi feito no ano 2000, com o fim de ser exibido na mostra de artistas jovens (todos menores de 25 anos) chamada Invisible :) (2000), realizada no Centro Cultural de España em Montevidéu, com curadoria de Fernando López Lage.

Entre os criadores selecionados para essa mostra, se encontravam junto a Paula Delgado os artistas Julia Castagno, Daniel Umpiérrez e Martín Sastre que, posteriormente, com Federico Aguirre, formariam o coletivo artístico Movimiento Sexy – de “cura cultural”, como costumavam se autodenominar –, debutando formalmente no Centro Cultural Recoleta de Buenos Aires com a performance Todo por Natalia (2001).

Como denominador comum, vale ressaltar que todos os integrantes do coletivo utilizaram a ferramenta vídeo para diversas produções monocanal que realizaram entre 2001 e 2003, contribuindo cada um com seus saberes individuais, assim como para o registro de suas incisivas performances, que tinham o humor e a ironia como condimentos indispensáveis. O Movimiento Sexy sacudiu o mundinho artístico vernáculo com sua desafiadora atitude iconoclasta e o contagiou, ao mesmo tempo, com um bem-vindo comportamento pop.

Ayer (2000) era o título do vídeo de Paula exibido em Invisible :), parte de uma instalação apresentada na sala de exposições. Na obra, víamos seu alter ego, a artista Mariana, prostrada em uma cadeira de rodas, a sós em seu quarto, evocando, através de uma fotografia, o ser amado – talvez simplesmente desejado. A fotografia caía ao chão, saída de seu regaço, e o objeto do desejo se materializava para fundir-se em seus braços, acompanhado de carícias. Finalmente voltava a desaparecer, e a solidão se abatia sobre Mariana de forma definitiva.

Como em uma espécie de videoclipe disforme, Mariana canta em modalidade de karaokê sobre o tema homônimo do mexicano Luis Miguel, explorando, dessa maneira, certas estruturas impostas sobre o papel feminino. Mariana é um ser passivo que espera o homem amado – a imobilidade sublinhada pela cadeira de rodas – e que somente pode continuar a esperar, sem tomar iniciativa alguma para que o encontro se torne realidade.

Após incursionar, nesse mesmo ano, em um vídeo com Daniel Umpiérrez para a instalação Sala de espera (2000), desse autor, Paula produz Feliz aunque no libre (2000), que também questiona determinados ritos sociais. Como o aniversário de quinze anos das mulheres, que motiva celebrações as mais diversas e absolutamente estereotipadas nessa altura do campeonato, do vestido e a valsa às centenas de fotografias e – como não? – o respectivo vídeo.

O vídeo, do mesmo modo que em Ayer, surge de uma performance que Paula realiza no centro comercial Montevideo Shopping Center. Os clientes habituais se convertem em surpresos espectadores ao vê-la descer a escada rolante principal trajando um elegante vestido salmão e luvas brancas, e levando um ramalhete nas mãos, para ser recebida por seu acompanhante, todo de azul, e dançar com ele a valsa de praxe. A seu lado, uma tela de vídeo exibe a célebre tirinha Amar é…, que por meio de frases-clichês, explicitava em que consistia, realmente, o ato de amar. Depois de terminada a valsa, o casal se retira pela mesma escada rolante, em meio a beijos e abraços. Ao registro, Paula incorpora, nas legendas, frases de Amar é…: “Amar é… sonhar com sinos de casamento e com bebês”, “Amar é… lavar os pratos sozinha”, “Amar é… manter-se em forma para ele”, entre outras.

No ano seguinte, e para uma exposição individual no Subte Municipal de Montevidéu, com curadoria de Adriana Broadway (um projeto de Daniel Umpiérrez), realiza o vídeo Candy. Queen of Karaoke (2001), que foi exposto com fotografias de Candy – a mesmíssima Paula Delgado utilizando novamente um alter ego – e de sua agitada vida social: na piscina, no cabeleireiro etc.

Candy é algo como uma Jennifer Beals terceiro-mundista e oitentosa, decidida a triunfar no maravilhoso mundo do espetáculo. O vídeo, gravado no edifício abandonado do Palácio de Justiça de Montevidéu, se prestava a outro karaokê, e dessa vez com coreografia incluída. O trabalho tem seu embrião em Candy Is among Us, apresentado na exposição BIG. Quisiera ser grande (2000), no espaço nova-iorquino Momenta Art, com curadoria de Santiago Tavella e Fernando López Lage. A obra lhe valeria uma menção, nada menos, no The New York Times, em dezembro de 2000.

Em 2004 e com Julia Castagno, obtém um prêmio para artistas jovens no concurso Paul Cézanne, organizado pela Embaixada da França em Montevidéu, com a intervenção urbana Expansiva. Juntas, levarão a cabo o vídeo Karina (2006), que estréia na coletiva Soberbia y pasión (2006), no Subte Municipal.

Segundo Paula, Karina é uma obra intermediária entre suas primeiras produções e trabalhos posteriores: “Sempre trabalhei sobre o tema de gênero, mas fui mudando o foco”. Karina é uma mulher que, como tantas, enfrenta a violência cotidiana de ver seus direitos mais básicos restringidos ao ter que suportar ser hostilizada em plena via pública por alguns homens que utilizam a palavra como forma de assédio, chegando ao contato físico. Nesse caso, há uma variante fundamental: Karina é boxeadora. E, se Mariana esperava, Karina passa à ação.

Cómo sos tan lindo (2005) é um vídeo realizado por Paula em que a artista coloca um anúncio em publicações solicitando homens que se considerem lindos para um casting. Catorze homens uruguaios são selecionados para atuar e responder perguntas sobre o tema da beleza masculina. Paula define Cómo sos tan lindo como um projeto itinerante sobre a autopercepção masculina da beleza e suas imagens resultantes.

O vídeo esteve na exposição 13 x 13 - trece curadores / trece artistas (2005), realizada no Centro Cultural de España de Montevidéu. O curador-geral, Manuel Neves, convidou Paula Delgado e Adriana Broadway/Daniel Umpiérrez (que já havia feito a curadoria de Candy no Subte Municipal) para trabalhar juntos. No catálogo da exposição, há um diálogo extremamente revelador entre Paula e Daniel, escrito ao modo de um texto curatorial:

-Paula: (…) O que quero é que não dê para escapar disso
-Adriana: Do que você não quer que dê para escapar?
-P:Da imagem de um rapaz nu como objeto erótico. É importante que a imagem seja grande porque não é algo muito comum, cotidiano. Tampouco é muito comum permitir-se ver uma imagem assim.
-A: Quando você se deu conta de que isso não era tão comum?
-P: Sempre. Não encontro imagens que explorem o homem a partir de uma visão feminina. O que existe costuma ser feito dentro de uma ótica homoerótica. O mais difícil é quando essa ausência é encarada como algo normal.

E é então que Paula decide em Cómo sos tan lindo deixar de lado os alter egos para passar a dirigir seus retratados, a se perguntar, com eles, mais do que sobre a beleza masculina, sobre a produção das imagens que são portadoras dessa beleza. O porquê dessa relação desigual entre corpos nus femininos e corpos nus masculinos.

A partir do vídeo gravado no Uruguai, o projeto Cómo sos tan lindo teve uma segunda parte, dessa vez com rapazes argentinos, produzido inteiramente na Argentina – é uma característica fundamental do trabalho elaborar a obra integralmente em seu próprio contexto – e que pôde ser visto no ano passado na Galería Belleza y Felicidad. Com os resultados visíveis, Paula decide aumentar a aposta e gravar em Santiago, no Chile, um terceiro vídeo.

A obra de Paula está em pleno desenvolvimento. Em cada novo vídeo que nos apresenta, ela afina a pontaria e se torna mais incisiva ao enfrentar criticamente um estado de coisas que devem ser revisadas e transformadas sem mais demora. As imagens produzidas por Paula Delgado nessa série de vídeos são as imagens que faltam, as que nos são escamoteadas, as que desejaríamos que existissem... As necessárias.

Um dos fundadores do NUVA - Núcleo Uruguayo de Videoarte, em 1988, Enrique Aguerre (Montevidéu, 1964) é referência na cena uruguaia de videoarte. Crítico, curador e professor, seu primeiro vídeo é de 1986. A partir daí, expôs em seu país e em países como Chile, Suécia, Itália, Grécia, México e Argentina. Em 1990 e 1991, seus trabalhos integraram a seleção de vídeos apresentados na Arco de Madri. Em 1993, participou da mostra Video Views, no MoMA de Nova York, e seu vídeo San Agustín passou a integrar a coleção permanente do museu. Teve obras selecionadas nas 10ª e 11ª edições do Videobrasil, em 1994 e 1996. Esteve no 3º Festival Internacional de Vídeo do Mercosul, organizado pelo Museu da Imagem e do Som, e das 3ª e 5ª bienais do Mercosul. Organizou um dos primeiros eventos de arte eletrônica no Uruguai, a 2ª Muestra de Videoarte Uruguayo, no Instituto Goethe, em 1988. Em 2001, selecionou obras para Elogio del video, exposição organizada por Graciela Taquini para o Museo de Arte Moderno de Buenos Aires, e foi curador da seleção uruguaia da 52ª Bienal de Veneza. Desde 1997, coordena o Departamento de Meios Audiovisuais do Museo Nacional de Artes Visuales.

Entrevista Denise Mota, 2007

Desde Candy e de Ayer, em que uma garota de cadeira de rodas canta Luis Miguel, a estética videoclipe-karaokê marca sua obra. Por que esse formato lhe interessa? Quais elementos oferece para a proposta que deseja construir?

O videoclipe surgia naturalmente no momento de abordar certos temas. Fui criança nos anos 1980, e o videoclipe acompanhou meu crescimento. Um mundo cheio de clichês até o cansaço, que tive que pensar e repensar para “superar”. Na maioria dos casos, funcionam como o exemplo perfeito dos estereótipos de gênero. Idéias claras e simples com bom ritmo e em pouco tempo. Uma boa fórmula para se apropriar. O que fiz nesses trabalhos foi repetir a fórmula trocando algumas fichas de lugar. No lugar da clássica “mulher de videoclipe”, a protagonista era uma jovem de cadeira de rodas, ou uma loira que não era loira, mas que usava uma peruca que caía mal. Não deveriam estar aí, mas estavam. Esse “não deveriam estar aí” evidencia os modelos impostos que incorporamos.

A condição feminina é outro elemento notável em seu trabalho. Com Candy, o alvo parecia ser a construção de uma verdade a partir das aparências. Ayer cria uma fantasia dentro da fantasia: usa a fórmula do clipe com uma protagonista, um lugar e uma situação que nunca estariam em uma produção pop. Evidenciar o que os estereótipos têm não apenas de agressivos e discriminadores, mas de vazios e grotescos é o objetivo desses trabalhos?

Gerar consciência sobre os estereótipos sempre me interessou. A idéia é parar por um momento e dizer: “Por que estão me dando apenas essa opção, se posso ter outras?” Na verdade, existem tantas opções quantas formos capazes de imaginar, o problema é que os meios de comunicação e a cultura em geral muitas vezes cerceiam essa capacidade, aprisionando-nos a uma só maneira de ver as coisas. Na maioria dos casos, essa maneira “correta” implica desigualdades. Quando nos permitimos sair desses esquemas, vemos que há outras possibilidades. Mas geralmente vivemos afundados neles, sem nos dar conta de que é possível sair.

Feliz aunque no libre aprofunda a questão, levando-a ao entorno doméstico. Por que os papéis sociais da mulher a atraem e quais aspectos dessa condição você quer ressaltar?

Não são os papéis da mulher que me atraem, mas os papéis das mulheres e dos homens. Acho que os papéis de gênero estereotipados prejudicam a mulheres e homens de igual modo, e me surpreende que isso não seja percebido assim. É como dizer que a discriminação racial é um problema das pessoas de raça negra, quando é um problema de todos. A menos que ocupar o papel de opressor seja visto como algo positivo. Enfim, Feliz aunque no libre é uma obra que construí com base em desenhos dos anos 1970 que eram publicados em um jornal local quando eu era pequena. Os encantadores desenhos para crianças diziam coisas como: “Amar é… lavar os pratos sozinha”, “Amar é… deixá-la manter conversas bobas pelo telefone”, “Amar é… deixá-lo ler a revista Playboy”, “Amar é… não deixá-la sair de microssaia”, “Amar é… limpar a banheira sem protestar depois que ele tomou banho”, “Amar é… alçar a barba depreciativamente quando você escuta falar do movimento de liberação da mulher”, “Amar é… sentir-se feliz, ainda que não livre”. Um conceito do amor, das mulheres e dos homens alarmante. Na obra, tento exorcizar essa informação, que entrou em minha mente quando eu ainda era pequena demais para raciocinar por conta própria.

Karina, trabalho seu com Julia Castagno, traz uma mudança de olhar, ainda que trate de mais uma situação feminina. A obra não apenas espelha o cotidiano, mas propõe uma solução simbólica ao conflito que apresenta. Como surgiu a idéia de fazer um vídeo sobre assédio verbal?

Julia Castagno e eu somos, além de colegas de trabalho e muito amigas, pessoas com muitos interesses comuns. O assédio verbal à mulher nas vias públicas é algo cotidiano em países como o nosso e é um tema que não podemos deixar de analisar. Não compreendíamos a aceitação de algo tão violento quanto a “cantada” de rua, mas queríamos saber como outras mulheres conviviam com isso. Assim, saímos às ruas para fazer entrevistas. O que encontramos foi que muitas das respostas estavam de acordo com nossa idéia: a “cantada” se transforma, na maioria das vezes, em uma fonte de insegurança constante para a mulher. Também fomos à delegacia da mulher para ver se a agressão verbal na via pública era algo que se podia denunciar, mas ninguém soube responder. Foi fazendo essa investigação que encontramos Karina. A solução simbólica que se apresenta no vídeo materializa nossa fantasia. Muitas vezes gostaríamos de agir frente a esses agressores de maneira radical. Na nossa vida, ainda que não batamos nesses homens, paramos e lhes respondemos à queima-roupa, lhes dizemos tantas coisas que eles ficam sem saber o que fazer. Talvez da próxima vez em que queiram dizer algo, pensem duas vezes.

Karina não tem uma atividade comumente associada ao universo feminino nem se vincula aos tipos que vinham sendo explorados por você: não é cantora, não aspira a ser popstar, não é romântica ou ingênua. É boxeadora. O trabalho foi sendo moldado pelo personagem?

O personagem apareceu sozinho. Depois de uma noite inteira de entrevistas, encontramos essa jovem de dezoito anos que nos dizia que os homens não costumavam se meter com ela, e que de todas as maneiras ela não sentia medo. Era boxeadora e isso lhe dava segurança. Imediatamente soubemos que ela seria a protagonista de nosso vídeo. Nosso trabalho é uma ficção baseada nas experiências que fomos coletando. Percebemos até que ponto a mulher não está preparada para se defender, e muito menos para atacar, e de que forma isso a coloca desde o princípio em uma posição de maior vulnerabilidade.

Karina retrata diversas situações e cantadas grosseiras. Como foi o trabalho de preparação e de “investigação de campo” para esse aspecto do vídeo?

Em primeiro lugar entrevistamos mulheres nas ruas de Montevidéu. Depois fizemos uma lista muito grande com as frases mais comuns que se escutam nas ruas. Daí fizemos uma seleção. Toda a equipe que trabalhou conosco (produção, fotografia, edição, maquiagem, figurino, casting), todas mulheres, havia ouvido ao menos uma vez uma frase como as que aparecem no vídeo. Meu namorado, no entanto, não podia acreditar que nos dissessem essas coisas. Em muitos casos, vivem ausentes de nossa realidade cotidiana. Não têm idéia do quão diferente é para um homem e para uma mulher caminhar pelas ruas. Por isso não quisemos suavizar a grosseria, para que se perceba tal qual ela é na realidade.

A série Cómo sos tan lindo traz uma nova mudança: refletir os mecanismos de construção da beleza feminina trasladando esses códigos para o universo masculino. A partir de quais percepções, reflexões e observações se construíram os conceitos desse trabalho?

Na verdade, Cómo sos tan lindo não traslada códigos da beleza feminina ao universo masculino. O que faz é colocar o homem diante da câmara, invertendo a ordem clássica (sempre a mulher é a observada). O ponto de partida da obra é um anúncio em jornais, em que se pedem “homens atraentes para fotos”. A partir daí, o conteúdo quem oferece são os homens que se apresentam: a definição do que é atraente, os gestos, as poses, a autopercepção a respeito da beleza. Se você percebe isso como um código do universo feminino, provavelmente é porque o único referencial da beleza que estamos acostumados a ver é o feminino. Quando vemos um homem posando em uma atitude sedutora, isso nos faz pensar em uma mulher, porque é quem costumamos ver nesse lugar. Isso diz muito. A imagem do “homem sedutor” que temos no imaginário é uma imagem construída pelos olhos de outro homem. O modo que uma mulher tem de olhar o corpo de um homem não é algo que estejamos acostumados a ver. Senti que a imagem do homem como objeto de beleza para a mulher era uma grande ausência e que era necessário buscá-la. Quando vejo as pessoas assistindo aos vídeos, me dou conta de que esse trabalho move fibras muito íntimas, pelo tipo de reação que provoca.

Você tem um projeto de investigação, realizado através de uma bolsa do governo uruguaio, sobre a questão de gênero nas artes. Como está estruturado esse trabalho e em quais aspectos você vai se concentrar especificamente?

Trata-se de um apoio do Ministério de Educação e Cultura, por meio de seus Fundos Concursáveis para participar de um encontro em Viena, organizado pelo Museum Quartier, com artistas contemporâneos de diversos países que trabalham sobre aspectos de gênero. Cada um desenvolve um projeto, e paralelamente se realizam conferências e mesas-redondas. Fui convidada para desenvolver Cómo sos tan lindo na cidade de Viena. Cómo sos tan lindo foi concebido como um projeto itinerante porque tenta ver como a construção da beleza varia em diferentes contextos culturais. Já foi realizado em Montevidéu e em Buenos Aires e, em breve, em Santiago e Valparaíso.

O pop, a linguagem cinematográfica-televisiva-de moda, a ironia e a crítica se fazem presentes ao longo de toda a sua obra. Manipular as ferramentas e os códigos com que os públicos contemporâneos estão acostumados é a melhor maneira de chamar sua atenção para as disfunções do discurso cultural de nossos dias?

É que são justamente esses códigos e essas ferramentas que constroem a contemporaneidade. É difícil refletir sobre a realidade que nos rodeia sem tê-los em conta, sem fazer referência a eles.

O simulacro é o filtro que se oferece para refletir um mundo muito parecido ao nosso, mas com alternativas menos recorrentes. Teatralizar a realidade, reproduzir as reproduções com que estamos habituados (por Hollywood, pela publicidade, pela televisão etc.), mas introduzindo aí notas dissonantes: é esse o fio condutor de sua obra?
Gosto da expressão “teatralizar a realidade”. Sim, há algo disso. Tem a ver com pensar a arte como modo de vida. Com viver a vida como um “work in process”. Procuro gerar experiências para multiplicar as possibilidades que me são dadas. São situações que não aconteceriam na realidade, mas que terminam sendo reais através da arte. E, a partir dessas situações, surge a análise, a reflexão. Sempre tento incluir a ação em minhas obras. Acho que é uma pena deixar que as pessoas contemplem a obra de um lugar distante. É importante que elas se envolvam. Que a obra se transforme na sua realidade naquele momento. Por exemplo, em Cómo sos tan lindo, me parece fundamental incluir na mostra uma instância com os homens que participaram. É um momento muito rico.

Em que outros lugares você gostaria de realizar Cómo sos tan lindo e por quê?

Adoraria realizá-lo na Índia e na China, ou no Japão, países-chave da cultura oriental. Entendo que nos países ocidentais se repitam padrões estéticos, gestos, formas de posar, e me pergunto até onde chega a globalização nesse sentido. Nas duas cidades em que realizei os vídeos até agora, mencionou-se Brad Pitt como exemplo de beleza. Acho isso engraçado. Acontecerá o mesmo na China? Seria impactante. Tenho previsto realizar a série no México e no Paraguai, dois países culturalmente muito fortes e machistas. O que me interessa desse trabalho é que são os próprios homens que jogam por terra as estruturas machistas com seu discurso. Não é necessário acrescentar nada.

Em 2003, você realizou com Julia Castagno um projeto de arte pública, Ciudad ideal, em que obras de arte ocupavam o lugar de painéis publicitários. Você disse na época que o objetivo era refletir sobre o uso que se faz do espaço público para criar “necessidades inexistentes”. Essa inquietação continua presente em seu trabalho?

Talvez não em meu trabalho atual, mas em mim, sim. O objetivo central dessa obra era tomarmos consciência, como cidadãs, além de como artistas, de que também temos direito de gerar o imaginário no espaço público, em vez de apenas consumi-lo. A cidade havia se coberto, nos últimos anos, de suportes luminosos para publicidades que só transmitem valores com fins comerciais. Parecia-nos um desperdício não aproveitar esses espaços, tão visíveis e bem iluminados, para outros fins. A obra foi conseguir colocar um novo conteúdo nesses suportes.

Você trabalha com produção publicitária. Ou seja, tem uma visão “interna” do poder, técnicas, linguagens e vícios da publicidade para gerar “necessidades inexistentes”. Como essa atividade alimenta suas criações de arte?

De duas maneiras. Por um lado, funciona como um treinamento. O relacionamento com uma equipe, a administração dos tempos, a sistematização do trabalho. Por outro lado, mantém sempre viva minha necessidade de criar imagens que equilibrem um pouco esses conteúdos publicitários. Dedico-me especificamente à produção de arte, não estou envolvida com as idéias, mas não posso deixar de me questionar sobre o que no fundo está sendo dito para vender um produto. É bastante terrível.

Martín Sastre é seu primo e com ele e outros artistas, como Dani Umpi, vocês integraram o coletivo Movimiento Sexy. O que ficou dessa experiência? Você ainda usa algo dessa época em seu trabalho?

Julia Castagno e Federico Aguirre também integraram o Movimiento Sexy. Com Julia, trabalho até hoje. A maneira que encontramos para nos auto-administrar e para nos projetar no exterior foi nos unirmos. Quando expusemos em Nova York no ano 2000, antes de ser Movimiento Sexy, todo mundo nos dizia que nossas obras dialogavam de um modo especial. Tínhamos muito em comum. A idéia do Movimiento era nunca perder as propostas individuais. Em uma exposição, podíamos apresentar uma obra em conjunto ou cinco obras individuais. O importante era que, juntas, essas obras propunham algo mais que a simples soma das partes. Unirmo-nos tornou-nos independentes do meio. Ganhamos força.

Biografia comentada Denise Mota, 2007

Depois da crise econômica de 2002, na esteira do tsunami institucional vivido pela Argentina no ano anterior, o Uruguai amanheceu mais vazio. A emigração chegou a níveis alarmantes: há estimativas de que mais de cem pessoas tenham abandonado o país diariamente naquele ano, a maioria com entre vinte e 29 anos. Os que ficaram não “apagaram a luz”. Arregaçaram as mangas para criar um modo de permanecer.

Floresceu, assim, uma geração empreendedora, desconectada da expectativa de benesse governamental e sintonizada com tendências e debates em voga no mundo. Nos últimos cinco anos, Montevidéu assistiu à eclosão de publicações, negócios e idéias que revitalizam distintos campos de atividade, de eventos de moda a centros independentes para a venda de obras de jovens autores. No embrião da criação artística, uma ala que representa “o pós-modernismo global”, como classifica a revista Artnet, saiu do gabinete para surpreender e dialogar com a sociedade.

Dessa “buena onda” estrutural, que resistiu ao furacão de início do século, faz parte Paula Delgado. Formada em economia, a artista – que, quando garota, e como várias meninas ao redor do mundo, tinha entre suas leituras juvenis as delicadas tirinhas da série Amar é... e que, adolescente, cantarolava George Michael, Madonna e Roxette ao som da programação da MTV – nasceu como criadora em inícios dos anos 2000.

O ponto de partida foram os experimentos teatrais dos tempos de faculdade. Daí partiu para a performance: “A estrutura teatral era rígida demais para mim, e a liberdade da performance com relação a tempos e espaço físico me permitia ser mais específica nos conteúdos e nas idéias que me interessava transmitir”. Logo agregou outras formas de expressão, como a fotografia e o vídeo. Em busca de linguagens e discursos, integrou, ao lado do primo Martín Sastre e outros artistas, o Movimiento Sexy, coletivo crítico e debochado, empenhado em colocar em relevo as estruturas do mercado de arte local.

“Acho que havia melhores expectativas naquela época, em 1999, 2000. Parecia que estava começando a surgir um monte de propostas, mas que depois desapareceram”, lembra. “A crise econômica provavelmente teve muito a ver com isso, muitíssima gente foi embora. Isso voltou a congelar o panorama artístico.”

O Movimiento Sexy, no entanto, aqueceu o cenário uruguaio e projetou Delgado, sobretudo internacionalmente. Candy, sua primeira criatura, formulada nesses tempos, visitou as páginas do The New York Times ao aterrissar em Manhattan com uma modernidade tão cuidadosamente construída como datada, baseada em um “American way of life” remodelado sob condições latino-americanas, anacrônico e deslocado.

“A recepção que meus trabalhos tiveram no exterior sempre foi melhor do que no Uruguai, sem exceções. Desde as primeiras obras que mostrei até o projeto mais recente. Quando aqui o público especializado ainda debatia sobre se o que fazíamos era arte ou não, lá fora processava-se cada obra rapidamente e havia um retorno. Isso é algo que me pesa no Uruguai, a falta de feedback. A realidade em Buenos Aires, por exemplo, é totalmente diferente. Todo mundo tem uma capacidade impressionante para absorver o que é apresentado. Entendem, processam e te devolvem algo. Dá gosto apresentar um trabalho em Buenos Aires, a energia que se move é muito forte.”

À intrépida Candy, seguiu-se a melancólica Mariana, garota de cadeira de rodas que, em seu quarto um tanto lúgubre, recheado de medicamentos e móveis velhos, fantasia o encontro romântico com o homem de seus sonhos, enquanto um hit do ídolo mexicano Luis Miguel, cantado por ela, embala o momento de devaneio.

Em um próximo passo, Paula renascia como uma Pollyanna encarnada em noiva-debutante, sua personagem em Feliz aunque no libre. Na obra, resgata o casalzinho desnudo de Amar é... para expurgar suas mensagens sexistas que inebriaram gerações. Depois disso, deixa de atuar em seus vídeos, abandona as personas e passa a propor reflexões sobre os temas que a intrigam – especialmente os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres – por meio de situações e pessoas pinçadas da realidade.

Dessa safra são os recentes Karina e Cómo sos tan lindo. No primeiro, a protagonista foi descoberta à uma e meia da manhã, no centro de Montevidéu, durante uma caminhada em que Delgado e sua amiga e colaboradora Julia Castagno recolhiam depoimentos de mulheres sobre como se sentiam e reagiam ao assédio sexual nas ruas, algo muitas vezes encarado como natural e sobre o qual costumeiramente não se fala. O trabalho foi exibido no Uruguai e na Argentina e selecionado para representar as artistas na Espanha, durante a 1ª Bienal São Paulo-Valencia, em 2007.

Em Cómo sos tan lindo, o objetivo era romper com outro tabu: colocar um grupo de homens em frente às câmeras, liberando-os do rol de machos todo-poderosos e realojando-os na posição de pessoas dispostas a fazer uma autocrítica de sua condição física, sem discursos ou papéis pré-concebidos. “O modo que uma mulher tem de olhar e retratar um homem não é o modo que estamos acostumados a ver. No imaginário, a representação do corpo de um homem é sempre construída pelos olhos de outro homem. Esse projeto é uma homenagem à beleza masculina e um espaço para poder falar disso com os próprios homens”, afirma Paula Delgado.

A autora mantém seus olhos em muitas partes. Para além das artes visuais, é professora na Universidad de la República, a universidade federal do Uruguai, e trabalha com produção de arte em publicidade, atividade que lhe fornece elementos para a criação artística. Em território acadêmico, publicou em 2005 La industria audiovisual uruguaya. ¿Realidad o ficción? Su impacto sobre las PYMES, escrito em conjunto com outros três pesquisadores do país.

Em 2008, realiza, em Viena, uma versão austríaca de Cómo sos tan lindo, com apoio do Ministério de Cultura do Uruguai. “A Europa tem um mercado de arte muito grande. Estão ávidos por propostas. A arte que fala de gêneros tem um lugar importante.”

Referências bibliográficas

Bienal São Paulo-Valencia
Paula Delgado participou da 1ª edição do Encontro entre Dois Mares, Bienal São Paulo-Valencia. Sob o tema A tolerância e a solidariedade, a mostra de arte contemporânea ibero-americana se realizou entre 28 de março e 17 de junho deste ano na cidade espanhola. Com a obra Karina, a artista integrou o eixo Outras contemporaneidades – Ativar uma história (Fricções urbanas), constituído por vídeos de outros catorze artistas.


Artnet
Sob o título “Jovem Uruguai”, a publicação traça um panorama da arte que surge no país a partir de trabalhos de autores com menos de trinta anos. O vídeo Cómo sos tan lindo, de Paula Delgado, é descrito como uma obra “irresistivelmente honesta” que “mostra que a ‘beleza masculina’ permanece um campo questionado na sociedade contemporânea”.


Cómo sos tan lindo na Argentina
À época da estréia do segmento portenho de sua obra, na Galería Belleza y Felicidad, a artista falou sobre os conceitos que sustentam sua investigação artística ao blog VisualMente. Focado em jornalismo e design editorial, o site argentino também traz imagens do trabalho.


25 anos de videoarte no Uruguai
Reportagem do diário La República apresenta La condición video, 25 años de videoarte en Uruguay, primeiro inventário do gênero no país, exibido em fevereiro de 2007 no Centro Cultural de España. Com curadoria de Enrique Aguerre, a mostra se organizava em quatro seções: Los inicios (1982-1987), Núcleo Uruguayo de Videoarte (1988-1994), El video como herramienta (1995-1999) e De ceros y unos (2000-2006). O blog do curador também trata de La condición video.