VIDEOBRASIL 40 | 10º Videobrasil

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postado em 31/03/2023

Ao completar dez anos, festival se consolida como evento de artes visuais e eletrônicas

   

Já durante sua primeira década de existência, em nove festivais realizados, o Videobrasil foi muito mais do que um evento dedicado à exibição e premiação de vídeos. Performances artísticas, instalações com variadas linguagens e suportes, feiras de equipamentos, debates e workshops sempre ocuparam o espaço do Museu da Imagem e do Som (MIS) durante os dias do festival. Mas foi com a mudança para o Sesc Pompeia, em 1992, que o espaço expositivo ganhou ainda maior destaque, aproximando o VB mais de uma mostra de artes visuais do que de um festival de audiovisual. É neste momento, portanto, que se percebe a necessidade de alterar o nome do evento, refletindo as mudanças em sua estrutura e foco. Assim, entre os dias 20 e 25 de novembro de 1994 foi realizado o 10º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica, incorporando em seu título um termo mais coerente com o que se apresentava e realizava no evento.

 

 

“O objetivo é olhar um pouco para a frente e ver como a arte eletrônica está caminhando”, dizia a diretora e curadora Solange Farkas em entrevista à Folha de S.Paulo. “Fazer a exibição já não corresponde ao movimento da videoarte. Videoinstalações e performances são as expressões mais significativas hoje.” Com essa concepção, em uma semana de intensa programação, o décimo festival ocupou toda a área expositiva e o teatro do Sesc Pompeia com 12 obras instalativas de importantes nomes nacionais e estrangeiros; quatro performances artísticas de impacto; e promoveu seis mostras paralelas dedicadas à países e uma exposição retrospectiva sobre a primeira década do Videobrasil – que se tornara, em 1991, uma associação cultural com a missão de preservar e difundir seu acervo.

Já estabelecido como evento internacional, bianual e dedicado especialmente ao Sul Global, o décimo festival dá sequência à profícua parceria com o Sesc-SP e é o primeiro que define um eixo temático para a programação: a poesia audiovisual. Assim como as tecnologias avançavam rapidamente, com novos equipamentos de vídeo e mídias de exibição (como o CD-ROM), as linguagens artísticas ganhavam novos rumos. Em seu texto para o catálogo, o diretor regional do Sesc-SP, Danilo Santos de Miranda, endossava a escolha da curadoria: “O que se busca é explorar caminhos para uma consequente e verdadeira poética do vídeo. Se ele já nos mostrou suas possibilidades descritivas, de documentação, utilitárias ou comerciais, resta saber de que modo é capaz de gerar uma linguagem poética”.

Uma das principais atrações da edição foi Robert Cahen, compositor que trocou a música concreta pelo audiovisual e se tornou um dos pioneiros da videoarte na França nos anos 1970. No festival, montou a instalação Le Souffle du Temps, composta por dezenas de velas e monitores que se apagavam e acendiam repentinamente, explorando o escuro como representação da espera, da surpresa e das emoções provindas da expectativa. Em entrevista, o artista mostrava ponderação no encanto com a tecnologia: “Estamos num momento como o dos primórdios do cinema. Fazemos experimentações com meios técnicos muito desenvolvidos, mas que não trazem nada de novo. É a imaginação dos autores que vai nos apontar o caminho para uma nova cinematografia”.

Outra pioneira do vídeo, a norte-americana Rita Myers apresentou a instalação performativa Ressurection Body, na qual um homem nu passava nove horas por dia deitado em na cama com eletrodos ligados ao seu corpo. As alterações em seus batimentos cardíacos geravam mudanças nas imagens – fotos de família de Myers – transmitidas em 14 monitores, colocando o corpo humano como expressão de “sentidos desestabilizados e reconstituídos”. Outro destaque foi Terminal II, do holandês Jaap de Jong, uma denúncia da violência da guerra no final do século 20. A instalação traz imagens de três músicos, cada um em um monitor, que executam uma espécie de “orquestra de mortos”, enquanto outra tela exibe imagens dos conflitos na Iugoslávia.

O tema da violência surgia também na obra The Shape of Pain, da dupla sérvia Breda Beban e Hrvoje Horvatic. Em um ambiente imersivo com vidros quebrados no chão, paredes carbonizadas e a projeção de uma lâmina cortando a palma de uma mão, a obra refletia a dor da dupla ao ter que abandonar seu país durante a Guerra da Bósnia. O nipo-americano Bruce Yonemoto, por sua vez, tratava do desenraizamento de imigrantes japoneses radicados no Brasil e nos EUA. Com duas telas, Separated by birth relacionava os testemunhos de comunidades distintas, mas donas de uma herança compartilhada. Um tanto menos angustiante era Motorway, do inglês George Snow, que celebrava o movimento ao mostrar – para um espectador sentado em bancos de uma Mercedes – filmagens de estradas com interferências de imagens virtuais. Já o espanhol Joseantonio Hergueta remetia à religiosidade cristã na sombria La Pornícula, enquanto o alemão Dieter Kissling usava um circuito fechado de TV para refletir sobre os meios de comunicação eletrônicos contemporâneos.

 

 

Três instalações de artistas brasileiros completavam o ambiente expositivo: em Ações Reflexas, Guto Citrangulo posicionou televisores sobre o lago do Sesc Pompeia, contrapondo imagens de catarses coletivas às de nuvens desfilando pelo céu; em A Casa dos Monstros, Marcelo Tas criava uma versão das "salas dos espelhos" de parques de diversão, colocando o visitante frente a frente com “o monstro” que habita dentro de si. Já Tempo vento morte, luz vento luz marcou a estreia de Carlos Nader no festival, com uma obra que explorava conceitos como transitoriedade, morte e tempo ao montar um corredor de lâmpadas estroboscópicas e um espaço com vento e imagens em vídeo. Conhecido por alargar as fronteiras do documentário a partir dos anos 1990, Nader se tornaria um importante colaborador do Videobrasil. 

Entre as performances, chamou a atenção No Sleep and a (Dead) Bird, do norte-americano Stephen Vitiello, na qual loops de guitarra, trinados de pássaros e textos falados pautavam a transmissão de imagens pré-editadas ou geradas ao vivo pelo artista. As imagens eram a trilha visual das músicas, não o contrário, como explicou Vitiello, compositor e curador que criou uma importante pesquisa na área da arte sonora. Poscatidevenum - Um Espetáculo de Música e Imagem, dos mineiros Eder Santos e Paulo Santos (músico do grupo Uakti), era um misto de música, falas, vídeo, cinema e dança que se concretiza em uma opereta – inspirada em uma viagem de metrô feita em São Francisco (EUA). Otávio Donasci, figura marcante no VB desde a primeira edição, apresentou o desenvolvimento de sua pesquisa com as “videomáscaras” e “videocrituras”, híbridos de instalação e teatro que propunham uma inusitada interação com o público. Por fim, o espanhol Antón Reixa recitou, em Without embargo (6 tentativas de falar em voz alta), textos sobre amor e o nacionalismo galego.

Consolidadas ao longo dos anos como rico espaço de difusão da produção internacional, as mostras paralelas da décima edição também direcionaram seu foco para a produção poética e experimental. Com curadoria de Solange Farkas, do uruguaio Ricardo Casas e do pesquisador argentino Jorge La Ferla, a mostra Panorama da Poesia Audiovisual na América Latina apresentou produções independentes da Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia e Uruguai, realizadas entre o fim dos anos 1980 e o início dos 1990. Em texto curatorial, La Ferla destacava: “Na América Latina a história do vídeo independente ficaria marcada pela diversidade dos equipamentos, pela busca libidinosa de uma criação e pela ausência total de incentivos produtivos. Esta situação se transferiu para a hibridez das produções, nas misturas dos formatos e dos gêneros”.

Dos países do hemisfério norte, Vitiello reuniu na mostra norte-americana cerca de 30 vídeos com referências à memória, aos sonhos e ao passado, muitas delas ligadas à arte sonora. Da França, Jean-Marie Duhard selecionou mais de 50 trabalhos referentes à poesia entendida como gênero literário. Da Inglaterra, Michael Mazière trouxe obras mais ligadas à intimidade e às individualidades, parte delas com o tema da homossexualidade como foco. A espanhola Carlota Alvarez Basso, curadora do museu Reina Sofía, selecionou de seu país vídeos que “bombardeiam fronteiras linguísticas e artísticas”. Obras que ela descrevia como videopoesia, vídeoperformance, vídeo-collage, vídeo-rock and roll, vídeo-diário ou vídeo-publicitário.

Completaram as paralelas um panorama alemão, curado por Hermann Nöring, com uma visão geral da produção do país no início dos anos 1990, da videoarte "clássica" a trabalhos de computação gráfica; e uma mostra dedicada especificamente à obra do belga Rob Rombout, autor de referência na produção documental, de enfoque ao mesmo tempo jornalístico, autoral e poético. Rombout também ministrou no festival um denso workshop sobre estas linguagens com as quais trabalhava.

 

 

Mostra Competitiva do Sul Global

O destaque dado às instalações e performances não significou uma diminuição na importância da mostra principal, chamada à época de Mostra Competitiva do Hemisfério Sul. Mais uma vez com foco na produção do chamado Sul Global, ela teve 37 vídeos selecionados, com uma maioria de trabalhos de videoarte – “de videopoemas em estado puro a obras que de alguma maneira trazem em si o poético; valorizaram-se os aspectos estéticos e formais, o domínio e a exploração das especificidades do vídeo como meio”, explicava o texto do festival. Entre os trabalhos escolhidos estavam produções do Brasil, Argentina, Austrália, Chile e Uruguai. Todos os diretores foram convidados para participar presencialmente do festival, consolidando o Videobrasil como espaço internacional de trocas e encontros.

O júri internacional da edição – formado por Christine Van Assche, Jorge La Ferla, Marcelo Tas, Michael Mazière e Tom van Vliet – premiou quatro trabalhos: Janaúba, do mineiro Eder Santos, vídeo que parte do filme Limite (obra experimental de Mario Peixoto) para construir uma narrativa poética sobre a vida no interior do Brasil; Diástole, de Inês Cardoso, baseada em fragmentos do poema Eurídice, de Arseni Tarkovsky, e que alude aos movimentos do músculo do coração; e Tereza, de Caco Souza e Kiko Goifman, documentário que sobrepõe textos de Jean Genet, Percival de Souza e S. Paezzo à depoimentos de presidiários da cidade de Campinas. O quarto premiado foi Captain Cardoso, dos argentinos Gabriel Yuvone e Pablo Rodríguez Jáuregui, uma paródia do “processo de aculturamento” da América Latina que une atores e animação, com referências bem-humoradas à cultura pop. Como premiação, Jáuregui recebeu uma bolsa de residência artística na produtora de efeitos visuais Ex Machina, em Paris.

Com linguagem mais documental, também se destacaram A Arca dos Zo'e, de Dominique Gallois e Vincent Carelli – criador do projeto Vídeo nas Aldeias –, obra que mostra um grupo de indígenas Waiãpi viajando de avião para a remota aldeia dos Zoé (Pará), com quem estabelecem um diálogo através da filmagem e apresentação de vídeos; Fuck the Pope, de Flavio Ribeiro, espécie de manifesto contra as declarações do Papa sobre a disseminação do HIV e sua posição contra as campanhas de prevenção da doença; Nove, de Fábio Almeida e Juvenal Pereira, uma videomontagem com imagens fotográficas do massacre do Carandiru, no qual a polícia de São Paulo executou 111 detentos em 1992; e God for All, de Roberto Berliner, que reúne depoimentos de jovens cristãos de 81 países que se encontraram no Brasil para debater temas como religião, racismo, sexualidade, violência e nacionalismo.

Tratava-se de obras, sejam as experimentais ou documentais, que dialogavam diretamente com o contexto político, social e cultural do período. A “nova ordem mundial” pós-Guerra Fria, na qual se difundia o neoliberalismo, seguia preservando desigualdades históricas, promovendo conflitos e resultando em conturbações sociais. No cenário brasileiro, o Plano Real entrava em vigor e catapultava a eleição de Fernando Henrique Cardoso para a presidência. Mesmo sem grandes avanços sociais, havia o prenúncio de alguma estabilidade no plano político e econômico – após o fim da ditadura, da superinflação e o impeachment de Fernando Collor. A vitória do Brasil na Copa do Mundo trazia consigo ares um pouco mais otimistas ao país.

Já estabelecido há quatro edições do evento, o Videojornal do décimo festival teve produção da equipe da Emvideo e direção de Eder Santos e Marcus Nascimento. Entrevistas com público e artistas, uma espécie de talk show e a atualização da agenda da programação criavam o boletim diário gravado e transmitido ao longo do festival, sintonizando o Videobrasil com o que se fazia de mais atual também no videojornalismo da época.

Como escreveu o jornalista Paulo Allegrini na Folha da Tarde, nos dias do evento: “Vídeo é arte, é ciência, televisão, publicidade, jornalismo, clipes, videoarte, performances multimídias, high definition TV, um imbróglio de buscas estéticas que tão bem traduz, de maneira caótica, diga-se de passagem, o impasse de tantos criadores pós-modernos, órfãos de tantas vanguardas do passado e caminhando sobre um campo de estilhaços revolucionários. (...) Vídeo é uma revolução de costumes que vem transformando a vida das pessoas”. Era essa a transformação acompanhada – e incentivada – de perto pelo Videobrasil: “O festival completa dez anos, com muitas dificuldades e sucessos, e sua estrutura atual é de fazer inveja a qualquer grande festival europeu”, concluía Evaldo Mocarzel em seu texto na Folha de S.Paulo.

 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do décimo Videobrasil, por Kiko Farkas.

Galeria 1
1. “Nome”, de Arnaldo Antunes, Célia Catunda, Kiko Mistrorigo e Zaba Moreau.
2. Robert Cahen e Francisco Ruiz de Infante.
3. “Le Souffle du Temps”, de Robert Cahen.
4. Breda Beban e Hrvoje Horvatic.
5. “Flight 101 To No Man's Land”, de Diego Lascano.
6. George Snow e Tom van Vliet.
7. Kimi Nii, autora do troféu da edição.
8. “Terminal II”, de Jaap de Jong.
9. Jorge La Ferla.


Galeria 2
1. “Captain Cardoso”, dos argentinos Gabriel Yuvone e Pablo Rodríguez Jáuregui.
2. Equipe do Videojornal.
3. “Território do invisível”, de Marcello Dantas.
4. Stephen Vitiello.
5. “Poscatidevenum - Um Espetáculo de Música e Imagem”, de Eder Santos e Paulo Santos.
6. “A Arca dos Zo'e”, de Dominique Gallois e Vincent Carelli.
7. “Diástole”, de Inês Cardoso.
8. Rita Myers e Stephen Vitiello.
9. “Ressurection Body”, de Rita Myers.