Ensaio Eduardo Simantob

Lucro líquido

Por trás de toda história de sucesso, marqueteiros e jornalistas – mas não só – costumam explorar supostas causas ocultas, os tais “segredos do sucesso”, como se nenhum empreendimento bem-sucedido fosse capaz de expor suas razões e qualidades de maneira clara e aparente. O sucesso do Peixonauta, cria da produtora independente TV PinGuim, não énenhuma história misteriosa, tampouco resultado de um feliz oportunismo, como tantos “cases” de “management” ou gols de Romário em sua fase áurea. A menção do “pequeno notável” aqui não é gratuita. Afinal, se futebol é arte, arte não é futebol, e as cores ufanistas que revestem os relatos do sucesso internacional do Peixonauta só servem para obscurecer os elementos que fizeram do desenho o que ele é, e muito menos contribuem para uma reflexão que possibilite a criação de outros casos semelhantes. É como acontece todavez que um filme brasileiro ameaça ganhar um Oscar; as qualidades ou defeitos da obra não vêm ao caso, imprensa e público “torcem” pelo produto nacional como se fosse uma final de Copa do Mundo e não uma eleição de competências, independentemente do que a Academia de Artes e Ciências de Hollywood entenda por isso.

O Peixonauta conseguiu a proeza de ser um programa de alcance universal falando de sua própria aldeia, mesmo que esta aldeia não seja precisamente circunscrita ao Brasil. O lócus do desenho é um universo de floresta indefinido, com elementos/animais de todasas partes do mundo e do imaginário, convivendo lado a lado. O que faz todo o sentido para o público-alvo, crianças de quatro a sete anos, cujo entendimento geográfico não prescinde de qualquer rigor ou precisão espacial. Porém, se a questão do espaço parece reduzida, e resolvida à sua simplicidade mais eficaz, a composição dos personagens apresenta uma sutileza que, vista de maneira paradigmática, ajuda a explicar a empatia com queo programa foi recebido em países e culturas tão díspares como Brasil (e América Latina), Turquia (e Oriente Médio em geral, via Al-Jazeera Children’s Channel), Canadá e ex-Iugoslávia.

O personagem-título é um agente secreto da organização de defesa do meio ambiente O.S.T.R.A. Seus amiguinhos compõem um mix de projeções identitárias que atingem a sensibilidade de crianças em qualquer lugar do planeta. A menina Marina oferece a segurança deuma identificação imediata para a criançada; no eixo do tempo, Marina é o presente. Já o macaco Zico remete ao nosso passado primata, o nosso elo mais próximo à natureza, ou a um estado de natureza quase pré-cultural (afinal, Zico tem o dom da linguagem, assim que não pode estar tão distante). O Peixonauta, por sua vez, encarna em simples traços uma projeção infantil, estilizada, de futuro; um peixe antropoide, vestido de astronauta (mesmo que o “nauta” do Peixonauta signifique “viajante”, fiel ao termo grego), com equipamentos fantásticos e quase mágicos, se não tivessem uma aura científica em seu entorno. A simplicidade dos traços não compromete a caracterização empática que aproxima oPeixonauta das projeções infantis. A mera composição de uniforme e equipamentos (gadgets, brinquedos, armas) exerce uma atração fortíssima nas crianças, sendo o astronauta mais um avatar dessa figura multifacetada que também se reflete nas figuras do bombeiro, do policial, do soldado e mesmo do pirata.

O desenho simples e sem afetação traz em seu bojo elementos muito mais complexos de identificação que, porém, não seriam suficientes se não estivessem ligados a um conteúdo também complexo que lograsse ser traduzido para a linguagem infantil. No caso, trata-se do ideário ambientalista que se tornou, não obstante seus fundamentos científicos, aideologia dominante do Ocidente neste primórdio de século. Consciência ambiental não significa mais abraçar árvores e se emocionar com bichinhos de todos os tamanhos; tal consciência desdobra-se vertical e horizontalmente nas relações sociais, hábitos e estilosde vida. A maneira com que nos despojamos do lixo, escolhemos nossa alimentação (quandose tem o luxo dessa escolha, claro), nossos padrões de consumo e até o meio social em que desejamos criar nossos filhos cada vez mais tendem a obedecer parâmetros ecossustentáveis que o consenso ocidental procura agora exportar para nações mais refratárias. E aqui não se trata apenas dos grandes vilões ambientais do momento, como os países BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), vistos como portentos econômicos, mas neandertais ecológicos. Japão, Islândia e Noruega, por exemplo, são os maiores pesos pesados do lobby baleeiro internacional. No Canadá, a matança sazonal de focas para alimentar a indústria de peles oferece um espetáculo de crueldade cujo efeito imagético pouco se distingue das imagens, já arquetípicas, do Holocausto. A cultura de plantas e alimentos geneticamente modificados também é invenção de grandes conglomerados agroindustriais do Ocidente. Os países em desenvolvimento acabam por importar tanto as práticas antiambientais das grandes corporações transnacionais como o ideário Verde, inclusive países onde movimentos ambientais autóctones gozam de relativo prestígio, como na Índia.

Nesse contexto, a difusão do Peixonauta nos países emergentes logrou realizar uma façanha que a diplomacia brasileira tem buscado a duras penas implantar desde o governo Fernando Henrique Cardoso, ou seja, o estreitamento das relações econômicas, políticas e culturais com a Ásia e África, livre da mediação norte-americana ou europeia. No mundo dobusiness televisivo, tal sucesso costumava ser exclusividade das telenovelas. No entanto, as novelas não chegaram a abrir portas mais significativas para a produção audiovisual brasileira no mundo, até porque nesse caso trata-se de produtos feitos especificamente para o mercado interno brasileiro, e cuja exportação garante aos produtores – primordialmente a Rede Globo – nada mais que um ganho marginal, sem que isso estimule o desenvolvimento de programas e de uma estrutura de produção voltados para o mercado internacional. O Peixonauta, entretanto, é um fenômeno completamente distinto.

>Em primeiro lugar, por ser uma produção independente que conseguiu extrapolar as fronteiras nacionais não apenas por conta da criatividade de seus autores. A TV PinGuim, como membro da Associação Brasileira dos Produtores Independentes, soube aproveitar os incentivos proporcionados pelo Ministério da Cultura, que subsidia a participação dos independentes, especialmente os produtores de animação e documentários, nas grandes feiras televisivas internacionais (Mipcom, MipTV, RealScreen, Kidscreen). Tal política foi decisiva na inserção dos produtores brasileiros no radar das grandes distribuidoras, emissoras e coprodutores estrangeiros, e o setor de animação tem sido uma das grandes estrelas. O que é de fato um feito considerável, em vista das exigências técnicas e altos orçamentos necessários à realização de desenhos animados. Produtoras como a 2DLab (RJ) eLightstar Studios (Santos) tanto produzem criações originais como são capazes de oferecer competitivamente serviços de animação à publicidade, TV e cinema no mercado internacional. O Brasil começa a parecer atraente até mesmo para brasileiros trabalhando há anos para grandes produtoras no exterior, como Disney ou DreamWorks.

Mas para se tentar entender o fenômeno Peixonauta, vale aqui deter-nos na sua penetração no mundo árabe, por meio da Al-Jazeera Children’s Channel (JCC). Diferentemente dos diversos canais Jazeera (canais noticiários em árabe e em inglês, esportes, documentários, filmes etc.), a JCC é uma empreitada da esposa do emir do Qatar, e sua sede encontra-se dentro de uma fundação ligada à universidade de Doha.

Trocando em miúdos, isso significa que o lucro não é o objetivo primordial da empresa, muito menos preencher sua grade com programas baratos arrastando um pacote de merchandising de brinquedos por trás. O chefe de programação é um tunisiano com vasta experiência na Europa, Fayçal Hassairi, e seu adjunto é um ex-cineasta marroquino- americano, Khalil Benkirane. Dotados de conhecimento privilegiado das diversas culturas muçulmanas(e uma equipe que é uma verdadeira legião estrangeira do mundo árabe), do Marrocos à Indonésia, assim como dos padrões audiovisuais europeus e americanos, Hassairi e Benkirane acreditam que qualquer mudança sensível de comportamento, especialmente no que diz respeito à consciência ambiental, deve começar pelas crianças. Inútil pregar para essa geração de adultos; na melhor das hipóteses eles vão tomar consciência por meio de seus filhos. Daí a importância que a família real do Qatar dá ao seu canal infantil. No entanto, a simples importação de programas europeus ou norte-americanos não funciona nos 22 países onde a JCC atua. Semelhante problema é enfrentado por outros canais infantis nospaíses em desenvolvimento. E é nesse vácuo que o Peixonauta encontrou seu “pitch” perfeito.

A difusão internacional do Peixonauta é uma importante porta para a produção audiovisual brasileira, mesmo que, isoladamente, a experiência da TV PinGuim não resolva a montanha de obstáculos que impedem uma maior participação do país no gigantesco fluxo de coproduções transnacionais. A TV a cabo tornou-se dominante, impondo um modelo de negócio no qual o financiamento de cada programa é dividido entre diversos parceiros, de acordo com os interesses pelos direitos por mídia e território. A produção é terceirizada, e a programação é montada por nichos, não mais almejando a grande massa. Isso cria um enorme desafio para os realizadores. Se, por um lado, os produtores independentes encontram uma demanda crescente, os requisitos básicos de qualidade exigem uma clara compreensão das línguas, linguagens, práticas e costumes dos diferentes mercados.

Esse é o grande gargalo do Brasil: o país ainda engatinha para se inserir nos fluxos de ideias, e as razões disso encontram-se, entre tantos outros fatores, primordialmente nas condições deterioradas do sistema educacional, muito além do escopo deste breve ensaio. Mas o Peixonauta não nasceu de uma ideia genial certa tarde tomando cerveja na garagem. O desenho é resultado de um longo processo de maturação criativa da dupla CeliaCatunda e Kiko Mistrorigo, para quem o fluxo de ideias, não importa por que mídias, línguas e territórios, é a preocupação central há pelo menos duas décadas. É esse tipo de criador que vai determinar a qualidade da presença brasileira no mundo, inclusive, se der sorte, no Brasil também.