Ensaio Marcos Moraes, 2006
Paisagem Sensível
“Tudo aquilo que nós vemos, o que nossa visão alcança, é a paisagem. Esta pode ser definida como o domínio do visível, aquilo que a vista abarca. Não é formada apenas de volumes, mas também de cores, movimentos, odores, sons, etc.” - Milton Santos
Recortes da paisagem oriundos da confluência de uma experiência de sensação e percepção, e determinados pela investigação do olhar sobre o espaço da natureza, podem se tornar uma entrada para indagar ou refletir acerca de Concerto para clorofila, obra com a qual Cao Guimarães recebeu o prêmio no segmento Estado da Arte, da 15ª edição do Festival Videobrasil.
Dizer de Cao Guimarães que é um artista multimídia pode parecer, aos acostumados com o vocabulário artístico contemporâneo, um clichê, mas ao olhar dos não iniciados, ou ainda para aqueles pouco familiarizados com as linguagens do vídeo ou das artes plásticas, uma tentativa de incluir o trabalho em uma das categorias mais em consonância com os novos tempos, de hibridizações, apropriações, deslocamentos ou de desfazimentos.
Esta tentativa de indicação de uma entrada para o universo do artista apresenta, desde seu início, uma das marcas características do trabalho experimentado por ele desde suas primeiras incursões nos campos da fotografia, do vídeo e do cinema. Inserido em um círculo - o de Belo Horizonte - ligado à produção, reflexão e crítica dos meios audiovisuais, a relação do artista com a produção mineira se faz sentir desde sua relação com diferentes gerações de artistas destes meios - de Eder Santos a Marcellvs L. -, como por características mais abrangentes e manifestas em outras linguagens como o tempo, a memória e a paisagem.
Como um mergulho, a idéia do movimento de voltar-se sobre o próprio eixo, e para o passado, a partir da obra Concerto para clorofila apresenta uma perspectiva da ampliação de relações com as linguagens, técnicas, meios, suportes e materiais. Neste momento, talvez, questão menor para as inquietações da arte? Questão já superada, ou minimizada pelas discussões teóricas e conceituais? Questão inadequada para a discussão das práticas artísticas contemporâneas? No entanto, isto parece ser, no mínimo, um ponto de partida para algo um pouco becketiano, como em um fim de jogo, uma situação limite e sem saída, como o estado atual de desconforto e de mal-estar em que parecemos nos situar. Com a questão ainda por ser respondida, a presente discussão, cada vez mais provocadora e desestabilizadora, se torna um dos fortes mecanismos buscados e abordados pelas discussões e nas propostas curatoriais das últimas edições do Festival Videobrasil.
Retomando a referência condutora destas indagações, alguns dos mais significativos e presentes elementos, como a música, imagem em movimento, cor, fotografia, linhas, além de tempo, memória, intimismo, entre outros, fazem parte da construção de Concerto para clorofila, como uma experiência da ordem do sensível, mais do que da ordem do vídeo ou da fotografia ou da pintura ou mesmo do cinema, uma forma de experiência estética, antes de ser experiência de mera pesquisa de linguagem.
Uma das primeiras sensações ao se relacionar com o trabalho é a da natureza do tempo, que se dilata, que se estende como uma nota suspensa no ar, e é mantida pelo toque, suave, do músico no instrumento. A imagem em planos (re)criados por Cao aprofunda uma relação com a paisagem, com a natureza, ao ativar seus princípios, quando, na verdade, este procedimento poderia ter produzido um distanciamento pela introdução dos planos monocromáticos sobre e nas imagens.
Não me parece tratar-se aqui de qualquer preocupação com discussões de representação, mas de afirmação do sentido e da potencialidade da percepção. A maneira monocromática, evidente, propõe uma abordagem que aparentemente conduziria, assim, ao distanciamento pela imagem, mas que se torna, ao contrário, eficaz ao nos conduzir por uma trilha, em uma literal viagem, não pela realidade da paisagem, mas pela experiência sensível proposta apesar daquela.
Desta forma, Concerto para clorofila pode ser lida de maneira a destacar, mas não cristalizar, suas características formais ou, ainda, como que a evidenciar uma opção de trabalho do artista, que nos permitisse vislumbrá-la como uma delas, mas isto também é visível nos trabalhos desde finais dos anos 1990: luz, cor, transparência, ritmo, musicalidade são alguns destes elementos constantes, presentes e atuantes em sua poética. A obra investiga noções de temporalidade e de beleza, entremeadas do sentido do efêmero.
Em trabalhos como The Eye Land (1999), Between - Inventário de pequenas mortes (1999), Sopro (2000, com Rivane Neuenschwander) ou Nanofania (2003), podemos identificar estes elementos comuns tendo a paisagem natural como foco; assim como é possível perceber a opção por estas imagens na qualidade de recorte singular, apresentando uma discussão sobre o estatuto da imagem no mundo contemporâneo e, por conseqüência, sobre a estética contemporânea.
Esta singularidade do olhar se desdobra em questões relacionadas aos aspectos documental, biográfico e autobiográfico, presentes em trabalhos como A alma do osso, ou Da janela do meu quarto, se contrapondo a uma pesquisa que nos permite compreender outro viés dos interesses do artista.
As passagens de estado (imagens), a delicadeza e suavidade na apresentação de uma natureza sentida e percebida, pois se trata de uma natureza em que a memória é um elemento atuante, não como forma de apagamento ou diluindo a materialidade daquela, mas potencializando-a como elemento poético. Ao pensarmos na paisagem como uma forma de percepção de determinada parte da natureza, estaremos operando com a diversidade da apreensão e seleção de fragmentos daquela, ensejando uma escolha, necessariamente diversa, e uma apresentação de mesma categoria. Aqui as passagens não se distanciam de outras realizações do artista mas, ao contrário, apontam para questões sempre presentes no conjunto da obra, como “o dentro e o fora”, “a idéia de diário filmado”, “o autobiográfico”, “desenhos, cores, luzes” e, desta forma, inserida no conjunto de sua obra, Concerto para clorofila parece indicar um processo de conclusão de questões. Em sua orquestração de valores, notas musicais, pausas e todos os acidentes que nos permitem ouvir esse sentimento da paisagem, ele nos propõe uma sonora paisagem e, ao mesmo tempo, produz um apagamento da materialidade do objeto, refutando a noção de representação da natureza.
Com Concerto para clorofila, Cao Guimarães simplesmente nos convida a uma viagem pela memória da sua paisagem e, mesmo que saibamos dos limites da construção da imagem, é muito difícil não se plantar em frente às imagens e deixar-se levar por elas, que soam aos nossos olhos com a densidade de uma peça musical que nos subtrai por alguns instantes de uma realidade para nos enredar, como por um flautista mágico que tenha encontrado a nota musical que todos procuram.