Ensaio Akram Zaatari, 09/02/2006
Queda infinita / ou amar inocentemente
O primeiro amor a marcar os anos finais da minha adolescência foi por um colega de classe, uma situação clássica para os homens gays em geral, na qual um jovem sente desejo por um colega que não sente o mesmo, e que está ansioso para fazer sexo com uma mulher pela primeira vez. Meu amado amigo tinha um amigo de infância que deixou o Líbano depois de concluir o primeiro grau, para estudar no exterior, e a quem eu tinha como rival mesmo antes de conhecer. Eu já tinha ouvido muita coisa a respeito dele e sentia como se o conhecesse muito bem. Uma das coisas que meus dois amigos haviam compartilhado no passado era um sonho, literalmente um sonho, que comprovava a proximidade entre os dois. No sonho eles estavam num elevador, em queda livre e infinita. Dada a natureza ambígua dos sonhos, eles não sabiam ao certo se estavam caindo ou voando. Por mais que o sonho representasse a amizade dos dois, foi minha iniciação ao ciúme.
Era uma situação curiosa e estranha, e também uma grande amizade, fortalecida obviamente pela sensação de isolamento e confinamento que se tem em uma situação de guerra. A mesma guerra é lembrada por outras pessoas de minha geração como um período de liberdade sexual, o que não se aplica ao meu protegido círculo de amigos classe média - e hoje em dia isso me surpreende.
Para mim, a experiência da guerra está intimamente ligada a detalhes, e muitos daqueles que foram abrigados em espaços domésticos, relativamente seguros, compartilham dessa sensação. Quando criança, aprendi a usar minha caneta e papel para escrever relatos sobre a guerra, as atividades da família ou outras coisas. Aprendi a usar minha câmera em casa, e também o meu gravador de som, para registrar tudo o que acontecia ao meu redor. Em tempos de guerra, o som da geladeira indicando o término de longos períodos de corte de energia evocava uma sensação de normalidade, até mesmo de segurança. Não se trata de nostalgia, apenas de descobrir a força dos detalhes, o poder que a banalidade tem de falar às emoções.
Ali Cherri e eu temos dez anos de diferença, mas compartilhamos muitos aspectos dessa experiência, que eu não descreveria necessariamente como traumatizante. Para a minha geração, falar de guerra é falar de infância, de adolescência e, inocentemente, das experiências do primeiro amor. Quando assisti a Un Cercle autour du Soleil, fiquei impressionado com a visão de Ali da paisagem urbana de Beirute, que lhe permitiu fazer um movimento de câmera contínuo e surpreendentemente infinito sobre um tecido urbano feio, mas encantadoramente familiar. “Tinha certeza de que qualquer confronto entre minha carne fraca e flácida e a morte era absurdamente inadequado. Não tinha o corpo apropriado para uma morte dramática.” Estaria Beirute salva da destruição pelo seu próprio caos, ou seria o caos uma conseqüência da guerra? Por que alguém teria interesse em saber a resposta? O tilt é ainda mais perturbador porque faz alusão a um corpo/cidade que sofreu uma mutação, ou a uma intervenção cirúrgica em um corpo morto. Será que habitamos as ruínas de nossa antiga cidade?
A obra de Ali Cherri baseia-se na sua história pessoal para comunicar algo sobre a guerra. A história do desejo de um menino, que coleciona fotos de corpos nus e termina com imagens, em sua maioria, de pessoas mortas, em Give Me a Body Then (performance), se transforma numa história sobre a guerra. As asas desenhadas nas costas de um homem são uma alusão evidente à guerra. Como contar uma história de guerra sem o desejo, o sonho e a vida por trás dessa história?
O desejo natural do corpo de voar é traído pela gravidade. Eu me lembro desse sonho, de estar em queda livre dentro de um poço de elevador. A verdade é que eu - também - tinha um sonho parecido com aquele quando jovem, um sonho que começava com a queda e terminava comigo ejaculando na cama. O sonho tinha um sabor agradável de libertação da gravidade. Hoje sei que voar é o sonho de todas as pessoas.
Beirute, 9 de fevereiro de 2006