Biografia comentada Teté Martinho, 02/2006

A ficcionalização da memória, a recorrência da morte e o papel preponderante do texto marcam a obra de Ali Cherri (Beirute, 1976), jovem expoente da geração de artistas libaneses que se manifesta a partir dos anos 90. Seu trabalho se enraíza na forma particular de claustro doméstico ao qual a longa guerra civil libanesa (1974-1991) obriga os moradores de Beirute, no subseqüente encontro com o corpo e a fantasia descrito em Un Cercle autour du Soleil (2005) e na proximidade de uma cidade ausente, que o conflito transforma em “não-lugar”, emaranhado de ruas sem nome, metrópole/necrópole. “A guerra expõe a ligação entre experiência pessoal e história”, diz o artista. A necessidade de comunicar elementos dessa experiência é o motor das narrativas pessoais que constrói - e nas quais, mais do que lembrar, trata de “inventar, para conseguir entender.” 

A apoiar a construção dessas narrativas, há o fascínio pelas histórias de mistério - em particular “pela figura do detetive que sai em busca de uma pista perdida ou de um corpo desaparecido” -, uma das primeiras ligações de Cherri com a arte, via literatura. As histórias de detetive, que persistem como referência implícita em obras como Un Cercle autour du Soleil e As Dead as Ever (2001), são o mote de um de seus primeiros projetos, um game interativo sobre um assassinato em uma biblioteca, e ressurgem na primeira incursão à performance, Nothing New Under the Sun (2000), baseada em contos de Sartre e Mishima envolvendo assassinatos. 

A performance marca a graduação do artista em Design Gráfico - campo no qual atua profissionalmente até hoje -, pela Universidade Americana de Beirute. Antes disso, trabalhando como ator, Cherri se aproxima da atriz e diretora teatral Lina Saneh, com quem faz, em 1997, Ovrira (em 2003, voltaria a atuar, em Ramad, filme de Joana Hadjithomas e Khalil Joreige). Em 2001, muda-se para Amsterdã e ingressa no curso de Graduação em Artes do Espetáculo da DasArts (Advanced Research in Theatre and Dance Studies), inaugurando um período fundamental para a maturação de seu projeto artístico.

No primeiro trabalho na Holanda, As Dead as Ever - Topologies of a Death Circuit (2001-2002), Cherri explora a cidade de Amsterdã a partir de um mapa particular que constrói com endereços dos mortos anunciados em obituários locais. A imagem gráfica desse “cacho de linhas, formas, letras e números” - que remete à cidade sem mapa, e igualmente demarcada pela morte, de sua infância e adolescência - se materializa em um circuito de portas fechadas que ele percorre, sempre registrando em vídeo, “na busca obsessiva da presença de uma ausência”. 

Na performance-palestra em que expõe o projeto, Cherri começa a construir a figura ironicamente naturalista do performer que usa da crueza de um conferencista para relatar algo de natureza não apenas ficcional, mas perturbadoramente subjetiva. Despida de qualquer artifício, a performance evidencia a densidade do texto e a maturidade das referências do artista, traços que o aproximam das experiências de expoentes da geração imediatamente anterior à sua, como Jalal Toufic e Walid Raad, criador do Atlas Group. 

O formato amadurece na performance Give Me a Body Then (2005), em que Cherri projeta uma coleção aleatória de fotografias e compõe, em torno delas, uma narrativa parte confessional - em que narra sua obsessão por imagens de pessoas nuas ou mortas - e se converte, surpreendentemente, em uma história de horror que ironiza (ainda que sem desprezar) o erotismo fatal da imagem. A obra, que foi exibida no Diskurs - Festival for Young Performing Arts alemão e no fórum Home Works III, realizado pela Ashkal Alwan - Associação Libanesa para as Artes Plásticas, em Beirute (2005), é precedida pela exibição, repetida à exaustão, da imagem de um homem que, munido de um enorme par de asas, tenta voar.

Mais que um coadjuvante, o vídeo é parte da experiência que serve de material às performances de Cherri. Curiosamente, os dois cenários que criou para artistas libaneses em seu período em Amsterdã se relacionam intimamente com o vídeo. Para Biokhraphia (2002), espetáculo teatral de Rabih Mroué e Lina Saneh exibido na Europa e na Ásia, desenhou uma moldura que se converte em tela, ora enquadrando o rosto da atriz que responde a um interrogatório sobre o papel do artista, ora escondendo-a por trás de uma cortina de fumaça ou de sua própria imagem projetada. Para 10/20 Irrelevant (2003), de Abla Khoury, apresentada no festival DisORIENTation, na Casa de Cultura de Berlim, criou o cenário que permite à artista contracenar com imagens de libaneses radicados em Nova York, que falam sobre seus “sonhos americanos”. 

A primeira instalação com vídeo de Cherri, que ele cria com Guy Amitai na DasArts, é do mesmo ano. Referida ao clássico do horror O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, e à história do próprio prédio - que antes de ser ocupado pela escola, abrigou uma escola para crianças com problemas respiratórios -, a obra é composta por intervenções e imagens de crianças enormes, que marcham sem sair do lugar, projetadas nas janelas. RedRum é uma tentativa de criar um elo entre o presente da escola e suas memórias de morte e sofrimento, dando aos “espectros do passado” um lugar no presente.

O movimento é em tudo semelhante ao que Cherri descreve em reflexão sobre seu vídeo Un Cercle autour du Soleil (2005): “Talvez, hoje, só os mortos tenham uma casa para onde voltar em Beirute. Nós, cidadãos de lá, só podemos ter esperança de sermos admitidos entre eles e, assim, poder viver de novo em nossa cidade.” Enquanto a imagem revela um trecho de Beirute costurado por ruínas, Ali compõe sua mais articulada narrativa sobre a guerra no vídeo, relatando da segurança que encontra sob as cobertas durante os bombardeios à descoberta do próprio corpo - que reputa frágil e feio demais para merecer uma morte trágica na guerra - além da decepção que a notícia do fim do conflito provoca nele. “Costumava me sentir enlevado pela idéia de viver em uma cidade que estava se comendo, da mesma forma que o excesso de suco gástrico digere e, gradualmente, come o estômago”, diz o texto. 

Além de receber o Prêmio FAAP de Artes Digitais no 15º Videobrasil, Un Cercle autour du Soleil esteve no fórum Home Works III, em Beirute - evento para o qual Cherri já desenhou duas publicações - e segue cumprindo uma rota de festivais que já passou pela Holanda, França e Alemanha. Recentemente, Cherri inaugurou na Galerie Sfeir-Semler, na capital libanesa, a instalação I Feel a Great Desire to Meet the Masses Once Again, em colaboração com Rabih Mroué, para quem já havia criado as irônicas fotomontagens de Limp Bodies (2003). A nova instalação reproduz imagens de performances de body art de artistas como Bruce Nauman, Yves Klein e Vito Acconci, sobre fotos da manifestação de 1 milhão de libaneses após o assassinato do ex-primeiro ministro Rafic Hariri, em março de 2005. A idéia é questionar a relação entre corpo e multidão, causa e indivíduo. Ou, na pergunta lançada por Cherri: “Temos um rosto quando somos parte de 1 milhão de outros rostos?”