Entrevista Teté Martinho, 01/2006

Na sua trajetória, o que veio antes: o envolvimento com a arte ou a idéia de ativismo?

Não penso em termos de ativismo. O que eu tinha muito claro, desde os primeiros trabalhos, era a idéia de intervenção urbana, de agir no espaço público, que te faz fugir de suportes tradicionais, como tela ou escultura, e propõe a construção de um novo suporte junto com o lugar, na criação de situações e de imagens. Ao desenvolver trabalhos de intervenção, entendi que eles não envolvem uma discussão só plástica, mas também sobre as lógicas urbanas. O que me motivou foi discutir o lugar onde o artista age, um tema recorrente na história da arte. A ampliação que a gente vê durante o século 20, a propagação da idéia de arte e vida como coisas interligadas, e não separadas por uma moldura. Cheguei à política em conseqüência disso.

Como foi sua formação em arte?

Saí de minha primeira faculdade de Educação Artística com a sensação de que não havia caminho para o novo. Era como se tudo já estivesse esgotado. Fiz direção de curtas e roteiro de cinema, mas o cinema também não me servia: é uma estrutura industrial, que nunca está só na sua mão. Queria experimentar a linguagem, ser autoral, autônomo. Voltei a olhar para as artes plásticas a partir de uma exposição da Ana Tavares que vi no MuBE, Relax'o'visions (1998). Esse trabalho me apontou caminhos que eu não acreditava que pudessem existir nas artes plásticas. Era uma exposição em que você não sabia muito bem o que era obra e o que era museu. Ela tinha uma lógica de se misturar com a arquitetura, de usar bancos, espelhos, coisas que você vê lá diariamente. É nesse limite entre o que é reconhecido como arte e o que seria a vida cotidiana, que você não percebe com outros olhos, que há uma tensão interessante de trabalhar. E ela faz isso com uma qualidade plástica super refinada. 

Esse é um ponto importante?

É. Por mais que haja uma discussão política e uma idéia de intervenção, é importante que o trabalho funcione também como linguagem, que tenha o acabamento necessário. Porque se o que a gente discute politicamente é temporal, focado em determinadas questões, meu interesse é me debruçar sobre as questões de linguagem, que são quase atemporais. O grande perigo de cair na categoria de arte política é te tirarem o que você tem de maior valor. A arte como instrumento é um dado atemporal. Quando você fala em arte política, é como se uma coisa se embrenhasse tanto na outra que no fim a obra não pode se descolar para um nível de transcendência, que não diz respeito a uma história específica, mas à humanidade.

O registo ganha uma importância especial, nesse contexto?

A idéia do registro está sempre presente: a obra é pensada em função, também, desse segundo momento. Minha primeira exposição, que fiz no meu próprio ateliê, já era um trabalho em dois momentos: havia a coluna de raio laser apontada para cima, uma obra com princípio escultórico claro. E havia o registro, em que o trabalho aparece no contexto da cidade, como obra fotográfica. Nesses primeiros trabalhos plásticos, que nasceram de uma pesquisa com trilhos de luz impressos no céu, por exemplo, por helicópteros, eu usava a luz, matéria-prima da fotografia, em obras que já carregavam a idéia do registro fotográfico. E tem também essa brincadeira recorrente da coisa que sai para fora do espaço expositivo.

Por mais plásticos que resultem, é como se seus trabalhos não se realizassem plenamente senão no contato com o espaço público, onde encontram, também, um significado político. Queria que você falasse da série Coluna Laser, um exemplo claro disso. 

Depois da exposição no ateliê, fui convidado para mostrar o trabalho no Salão Nacional de Artes de Belo Horizonte (2000). A Coluna Laser II (2004), no Sonarsound de São Paulo, já é um desenvolvimento: dois lasers horizontais que apontam para o Centro Empresarial e a favela de Paraisópolis. Foi uma estratégia feliz: a força de capital gigantesca da Nokia, que fazia o evento acontecer e preocupava-se apenas com o público que pode comprar celular, era deslocada, em forma de luz, para um ponto da cidade que a Nokia jamais iria iluminar. Coluna Laser III (2005), na Mostra Pan-Africana de Arte Contemporânea, na Bahia, é uma decorrência do Sonar. Só que, nesse caso, havia a discussão da identidade negra e eu queria apontar o não-lugar, o lugar que pode ser perdido se você não tem como determinar qual é exatamente sua identidade negra, branca, índia. A obra é isso: há um apontamento, uma direção, mas não um ponto específico. 

Você tem uma assinatura gráfica forte, que se insinua até quando a tônica é a ação. Qual é a importância do desenho no que faz? 

Tudo tem um desenho por trás. A idéia do desenho como uma estrutura primeira do trabalho fica cada vez menos clara à medida que vou saindo da discussão plástica e entrando em relações humanas. Mas nos trabalhos plásticos ele é sempre a estrutura básica, que às vezes é ampliada espacialmente e vira escultura, ou é transformada pictoricamente através da fotografia. E ainda que desapareça a idéia gráfica, no sentido de uma linha montada, fica a idéia do gesto. Como, por exemplo, no trabalho em que me prendo a uma ponte levadiça em Roterdã para revelar seu movimento.

Nos processos de intervenção, você quase sempre trabalha em grupo. Como surgiram A Revolução Não Será Televisionada, a idéia de interferir na TV e a ligação com a chamada mídia tática?

A relação com a mídia é um incômodo para todo mundo que vive nessa sociedade contemporânea espetacularizada, que tira o indivíduo da sua relação social e o coloca em um mundo que não existe como experiência, só como contemplação. Toda arte, por mais espetacular que seja, sempre propõe uma experiência de troca. A Revolução Não Será Televisionada começou com um show que fiz com o Eugênio Lima, Roberta Estrela D'Alva e a Unidade Móvel. Editei um vídeo com intervenções minhas para esse show e, depois, senti que havia espaço para inserir o material na TV. Fechamos um programa semanal no Canal Universitário, formamos o grupo com Fernando Coster, André Montenegro, que trabalham com cinema, e Daniela Labra, crítica de arte, e começamos a chamar artistas de vídeo que não tinham um circuito além do da arte para exibir. Os programas tinham estrutura de narração, vídeo, intervenção e música, e eram colagens feitas com trabalhos de 50 desses artistas. Era muito interessante como proposta de intervenção: você estava zapeando entre o SBT e a Cultura e de repente se deparava, por exemplo, com Lia Chaia se riscando em Desenho-Corpo. Era uma ruptura clara com a proposta televisiva de repetição e cópia. O Mídia Tática Brasil, organizado pelo Ricardo Rosas em 2003, foi o momento em que vários grupos perceberam suas conexões e sua identidade com a rede internacional de ativismo. 

Liberte-se (2003), do ARNSTV, surgiu de uma parceria feita nessa época com o grupo de teatro Cia. Cachorra e é um exemplo acabado de proposta de intervenção urbana que se define na resposta da rua. Como começa um trabalho assim? 

Quando começamos, só tínhamos a placa. Resolvemos sair na rua com ela e ver o que acontecia. Fomos percebendo na ação o que era o trabalho. As pessoas começaram a nos questionar: mas vocês estão me mandando me libertar do quê? Percebemos que o lance era devolver a pergunta. Mas do que você quer se libertar? E aí que surge todo o trabalho. Liberte-se é quase uma ironia sobre essa figura meio heróica do artista que vai pra rua, na sua escala individual, e lida com a escala urbana. A idéia de convidar um grupo de teatro, de colocar atrizes numa situação que não é de palco, uma situação de troca completamente improvisada, e depois colocar no palco essas mesmas atrizes fazendo um trabalho cênico em paralelo à imagem delas na cidade é um jeito de fazer uma brincadeira com esse artista-herói.

A ironia também é a marca de Blitz (2002). O que ela te permite?

Em Blitz, eu propunha uma blitz fotográfica para os policiais: do mesmo jeito que eles vêm com as armas e me colocam numa situação constrangedora, eu chegava com a arma que tenho, a câmera, e pedia para tirar uma foto com eles. A maioria recusava, alguns aceitavam. O oficial tirava a foto, eu do lado dos policiais, só isso. As imagens que resultam são muito ambíguas: você percebe claramente um incômodo em mim, e as poses de autoridade e força que os policiais criam. Consegui expor as fotos no Comando Geral da PM de São Paulo e eles não perceberam a ironia. Para eles, a imagem refletia só o lado positivo do cidadão querendo se aproximar da polícia. Já os críticos levantam exatamente o ponto irônico disso, o sinal que eu fazia em algumas fotos, de tipo positivo operante, essas coisas de polícia. Fui abordado por manos do rap que falavam: meu, como é que você tá saindo em foto com polícia? Para mim, esse estado-limite é que põe movimento no trabalho. Ou ele seria panfletário. Seria eu fotografando a polícia batendo num cara. Quero poder ser lido de várias maneiras. 

A Frente 3 de Fevereiro tem uma temática muito específica: a distinção que a polícia faz entre negros e brancos. Qual é a sua contribuição como artista ao trabalho do grupo?

Foi minha mãe, Maurinete Lima, quem propôs criar uma frente de trabalho para discutir o caso Flávio Sant'Ana e como ele desafia toda uma crença de que o negro, se galgar os caminhos sociais da elite branca, está se livrando do preconceito. Flávio estudou, se formou, tinha uma namorada branca, carregava todos esses símbolos, e foi morto brutalmente por uma polícia para a qual a cor determina quem é suspeito - e que mata por “atitude suspeita”. Minha contribuição não é na discussão teórica do preconceito, mas na organização das linguagens e na criação das estratégias de intervenção. Nossa primeira ação, Monumento Horizontal (2004), vem de um legado da Argentina, muito forte em ativismo político e na junção de arte e política. Para identificar os lugares onde pessoas eram mortas, eles usavam monumentos que, por não se erguerem verticalmente, podem ser feitos de forma clandestina e têm mais permanência. Nossa idéia era fazer monumentos em série, em outros incidentes policiais, para que isso virasse uma estratégia popular de manifestação. 

Em Jailtão - Ônibus, o artista tenta vender consciência dentro de um ônibus, como um ambulante. Em Liberte-se, meninos vendem em um farol um panfleto com a expressão do título. Achar essas brechas para a ação é uma preocupação recorrente. Ensinar estratégias também é?

Brechas, fendas, espaços não preenchidos, tanto no espaço urbano como na vida pública, é que são interessantes de explorar em intervenção. O ponto, para mim, é encontrar as estratégias para cada ação, pensar que impacto elas terão no cenário urbano, o que vão dizer etc. Em Futebol, por exemplo, a bandeira que é aberta com a frase “Onde Estão os Negros?” na hora do gol usa o momento em que a TV mostra a torcida para expor uma mensagem que não é de futebol. Então é como se a gente estivesse inventando um repertório de estratégias para usar e propagar. Se elas serão usadas ou não, a história é que vai dizer.