Biografia comentada Paula Alzugaray, 04/2007

Artistas viajantes

A condição de imigrante permeia não apenas as escolhas de vida de Maurício Dias e Walter Riedweg, mas principalmente suas posições artísticas e políticas. Entre os anos 1980 e 1990, Maurício Dias viveu como imigrante na Europa. Foi o tempo em que, desacreditado do sistema da arte como um lugar possível para a expressão poética, deu um giro na posição que ocupava como artista plástico, trocando uma produção em pintura e desenho por ações então estrangeiras ao campo da arte. Do encontro com Walter Riedweg, atuante nas esferas do teatro, da música e da performance, surge uma prática coletiva e híbrida, apoiada sobre um projeto a uma vez estético, cultural e político. Um trabalho que, como aponta a crítica e curadora francesa Catherine David, no texto Do próximo e do distante: algumas notas sobre o trabalho de Dias & Riedweg, “nos convida a repensar a relação entre estética e política e a questionarmos politicamente as práticas artísticas”. De fato, a cada trabalho realizado, dispositivos são renovados no sentido de buscar uma nova percepção da realidade, algo parecido ao frescor do primeiro olhar sobre o mundo.

Há oito anos, Maurício Dias voltou a viver em sua cidade natal, o Rio de Janeiro, e agora é Walter Riedweg, nascido em Lucerna, na Suíça, quem vive a condição de imigrante no Brasil. Mesmo com essa troca momentânea de papéis, permanece em ambos – através de seus projetos – a mesma verve experimental que leva todo imigrante a movimentar-se por terrenos insólitos. 

Não apenas o primeiro trabalho desenvolvido pela dupla Dias & Riedweg, Serviços internos (1995), mas a maior parte de seus projetos passa pela questão da imigração. “O imigrante é aquele que se desloca não só no espaço geográfico, mas no espaço de tempo. Isso dá a ele um status único de percepção do mundo”, afirma Maurício Dias. Reinstaurar a complexidade da vida e adensar o grau de percepção das pessoas em relação a sua realidade. Por aí passa o ativismo das propostas de Dias & Riedweg, que se realizam por meio de experiências sensoriais interativas – encontros encenados, situações orquestradas, ateliês de sensibilização, exercícios de improvisação e outras estratégias de relação e comunicação com os grupos trabalhados. 

O primeiro trabalho de Dias & Riedweg foi feito para o Shedhalle, em Zurique, na Suíça, uma instituição de arte contemporânea dedicada muito mais a propor questões e reflexões do que a propriamente montar exposições. Serviços internos foi realizado com 280 crianças estrangeiras, integrantes das aulas de integração nas escolas públicas de Zurique, a partir de exercícios de associação entre o olfato e a memória. Multilíngües, vindas de países diversos da África e da Ásia, as crianças ganharam, como idioma comum a todos, um jogo sensorial proposto por Dias & Riedweg. “A comunicação se deu através dos cheiros e eles entenderam que queríamos uma representação do país de onde haviam saído e desse novo lugar onde eles tinham acabado de chegar”, conta Maurício Dias. 

O vídeo documentou os depoimentos dos alunos, que associaram cheiros a acontecimentos passados e às primeiras impressões da nova realidade. Como um sintoma da metodologia que viria a se desenvolver nos próximos doze anos de trabalhos da dupla, os depoimentos eram feitos sempre de olhos fechados, indicando a valorização dos outros órgãos dos sentidos em detrimento da visão. Depois do olfato em Serviços internos, veio o tato em Devotionalia (1994-2003), o trabalho com tato, olfato e corpo em Question Marks (1996); olfato, audição e visão em Inside & Outside the Tube (1998); paladar em Sugar Seekers (2004). Em todos esses trabalhos, os workshops de sensibilização foram utilizados para mobilizar a memória dos percalços e percursos da viagem de cada um. Além do trabalho sensorial, as estratégias da dupla envolvem uma série de outras atividades, como ateliês de desenho, escultura, ou dinâmicas teatrais. A viagem, porém, permanece como fio condutor de todos os projetos. 

A viagem não está apenas e tão somente nos conteúdos das conversas que se estabelecem com o outro. A viagem está na própria dinâmica de vida e trabalho dos artistas, já que a maioria de seus projetos é feita longe de casa. Algumas vezes viajando a convite de Bienais e instituições artísticas, outras, não, o interesse está sempre em desenvolver dinâmicas específicas para mobilizar questões locais. No Rio, em Zurique, Atlanta, São Paulo, Cairo, Alexandria, Veneza, Tijuana, San Diego, Johannesburgo, Munique, Barcelona ou nas ilhas nórdicas, buscam realidades locais que traduzam questões universais. Os encontros encenados com os michês de Barcelona, em Voracidade máxima (2003), por exemplo, representam os vínculos que ligam questões como dominação econômica e imigração. Já em Os Raimundos, os Severinos e os Franciscos (1998), o enfoque no espaço arquitetônico miserável reservado aos porteiros de edifícios nobres paulistanos indica o desprezo das elites brasileiras em relação ao trabalhador. 

A experiência do mundo, em Dias & Riedweg, mesmo que andarilha, não se mede por distâncias geográficas. “O que seria a proximidade?”, pergunta Walter Riedweg em entrevista ao FF>>Dossier. “Posso me sentir fora de lugar estando no meu lugar.” O último projeto, em andamento, Funk Staden (2007), que está sendo realizado para a Documenta 12, de Kassel, na Alemanha, explora duas instâncias da distância, a temporal e a espacial, e estabelece uma ponte entre a cidade de Kassel do século 16 e a cidade do Rio de Janeiro do século 21. Pelo grau de intervenção na realidade, pelo trabalho com questões que são impalpáveis e com coisas que são invisíveis (permanecem escondidas sob rígidas convenções sociais), Dias & Riedweg não podem ser reconhecidos pura e simplesmente como artistas plásticos, ou visuais. Como viajantes, eles se movimentam por terrenos ainda não plenamente absorvidos pelo sistema de arte e isso lhes garante alguma liberdade de expressão e movimentação. Mesmo que passem perto da ação e da assistência social (embora nunca tenham se instrumentalizado nesse sentido), e alguns trabalhos possam ser identificados como uma arte pública, o que permanece no corpo da obra de Dias & Riedweg é o desajuste a modelos e categorias. Dessa forma, habitam o estado incógnito da vida no exílio.