Entrevista Denise Mota, 10/2007
A maioria dos seus trabalhos traz imagens do exército sueco e registros bélicos, sempre ficcionalizados: vêem-se soldados, mas não há inimigos. É esse o tema central de sua obra – apontar para a mitificação do poderio militar, algo que existe para se retroalimentar, mais do que por necessidade real?
Nos últimos anos, o que tem me interessado cada vez mais é a imagem midiatizada dos fatos bélicos e da violência organizada e institucionalizada: como é representada hoje, pelos meios de comunicação e em particular a TV, a ação das Forças Armadas. Isso é o que mais me interessa estudar. Desde que comecei a estudar as imagens apresentadas pela mídia, rapidamente na minha cabeça se estabeleceu uma relação com o romantismo sueco que, na maioria dos casos, está muito relacionado a imagens de guerra. Na Suécia, em particular, a academia de arte na qual estudei foi em suas origens uma academia militar que ensinava os soldados a desenhar, porque esta era a única maneira de documentar graficamente as batalhas. É por isso que em muito do que faço atualmente me apóio na tradição nacional romântica sueca. A natureza neste país desempenha o papel de um cenário em que o imaginário nacional deposita muitas de suas fantasias, medos, desejos etc.
Esta curadoria apresenta criadores uruguaios que tratam de uma sociedade saturada de imagens e discursos prontos. Seus vídeos muitas vezes apontam para o que Jean Baudrillard definiu como “a era da simulação e do simulacro”.
Tenho muito presente, antes de tudo, o texto de Baudrillard sobre a Guerra do Kuwait, em que afirma que essa guerra nunca foi como se mostrou, nunca existiu, mas foi, sim, uma série de imagens que os Estados Unidos geraram e projetaram para o mundo. A partir dessa experiência e da crítica que o exército norte-americano recebeu, desenhou-se uma nova estratégia para o Afeganistão, em que se lançou o conceito do embedded journalist (jornalista embutido). Assim como a máquina de informação trabalha no hiper-realismo, sinto necessidade de caminhar na mesma trilha para enfrentar isso. Mais do que nunca, a simulação é uma arma importante, que pode ser muito potente nas mãos de um artista. Acho que esse é um conceito vital que os artistas têm de entender hoje. De certa forma, em alguns momentos minha estratégia é a mesma: gerar uma imagem que parece real, mas não é. Uma mise-en-scène que não se choca frontalmente com a imagem oficial, mas é um leve desvio rumo a um mundo paralelo. Minha maior ambição é promover a dúvida e, conseqüentemente, a reflexão. Poderia dizer que o que faço é videoativismo de baixa intensidade.
Transitar da pintura para o vídeo também foi uma forma de se comunicar mais amplamente com o público de hoje?
Sem dúvida hoje é a TV que ensina as pessoas a olhar. Também por isso o vídeo é a ferramenta mais eficaz que nós, artistas, temos para nos comunicar mais além dos espaços que tradicionalmente usamos, como galerias e museus. A TV é o lugar que nos falta penetrar.
Em Gilberto’s Place, o soldado – alguém que, nas suas criações, geralmente vemos em grupo – aparece sozinho. Outra diferença é que ele se mostra em sua individualidade, revela o rosto. Tanto sua camuflagem como o entorno que o abriga fazem com que o espectador tenha a impressão de se tratar de um ser fantástico ou de um misantropo misterioso. Por que essas mudanças e o que você pretendeu investigar nessa obra?
Gilberto’s Place parte de um fato pontual no Uruguai: a fuga e a captura do coronel, depois deposto, Gilberto Vázquez, um dos chefes da inteligência durante a ditadura militar. Há componentes de espetáculo no episódio protagonizado por Vázquez. Quando estava detido, à espera da deportação para a Argentina, fugiu para o Hospital Militar e foi capturado. Algo que realmente me chamou a atenção foi que, no momento em que o prenderam, ele havia se disfarçado, “camuflado”, de indigente. O acontecimento, amplamente coberto pela mídia uruguaia, foi o disparador desse trabalho, em que investigo minhas próprias fantasias em relação ao evento. Ele mostra um momento quase ritual, um estado de reflexão desse ser oculto em sua solidão, escondido, abandonado por seus pares. É o retorno a um estado selvagem, e o que observamos é o resultado desse processo.
A constância da camuflagem em suas obras pode ser vista como símbolo da necessidade do homem atual de “fazer-se passar por” para se integrar aos ditames de nossa época? De precisar de uma “segunda pele” para sobreviver em seu meio?
A camuflagem é para mim um símbolo muito importante, com uma carga pessoal muito grande. Muito íntima, poderia dizer, na medida em que em minha vida, por diferentes circunstâncias, desenvolvi uma capacidade quase camaleônica de me adaptar a meios diferentes. Mas ela é apenas uma capa. É uma metáfora de auto-reflexão: diferentes circunstâncias difíceis de minha vida me ajudaram a desenvolver a capacidade de me camuflar “no outro”. Essas circunstâncias estão particularmente relacionadas ao exílio e à exigência de ter que viver em culturas muito diferentes da minha. Morando agora na Suécia, o “sumo” da camuflagem é quando um nativo pensa que sou sueco, o que na verdade é um efeito involuntário, e não algo que procurei.
Você viveu desde pequeno os frutos amargos da ditadura e o exílio. Enquanto realizava trabalhos em torno da camuflagem, teve consciência dessas dinâmicas ou essas interpretações afloraram a partir da crítica?
No princípio, havia uma atração por algo que viria a ser a estética da ilusão. Para mim era fascinante, no sentido de visualizar um perigo iminente, ainda que oculto. Ou seja, no começo havia uma carga estética muito forte, mas com minha própria evolução e um pouco da influência de certas críticas comecei a refletir sobre outros componentes que fazem parte disso e a relacioná-los a coisas mais pessoais, com minha própria vida e minha relação pessoal com o mundo organizado e institucionalizado da violência.
Em que projeto trabalha agora?
Estou desenvolvendo um projeto que se chama Juba. Vai ser uma instalação de vídeo baseada em imagens que encontrei na internet. Há em Bagdá um franco-atirador que age sob o nome de Juba e que filma o momento em que dispara contra soldados norte-americanos, muitas vezes matando-os. O material em si, da maneira como está apresentado na internet, cumpre a função de fazer propaganda política a favor da insurgência iraquiana. É evidente que esse franco-atirador, na verdade, são muitos franco-atiradores, mas o que esse vídeo pretende criar é a ilusão de que há um superpatriota que, sozinho, se encarrega de fazer justiça contra o inimigo invasor. Nesse caso, Juba é uma metáfora que nos faz pensar no Rambo, a fantasia do supersoldado iraquiano. O que me interessa nesse material não é o que Juba faz, mas o que vê e o que nós vemos também: um soldado americano em uma rua de Bagdá, parado, em guarda, não fazendo nada. E, nesse momento de aparente calma, soa um disparo, e o soldado cai. Estou reproduzindo esses vídeos com a ajuda de marionetes, de uma maneira bastante exata. Mas, como sempre acontece quando se trabalha com esse tipo de material, há uma distorção que tem a ver com as dúvidas e fantasias que ele me provoca. Não é suficiente para mim ver o que Juba vê. Quero ver mais, e a única forma de conseguir isso é ocupando seu lugar.
Você tem um trabalho sobre o suicídio. Do que se trata?
É um projeto que não se refere precisamente ao suicídio, mas a atentados suicidas. Por enquanto, está em compasso de espera. Baseia-se em relatos vindos de diferentes zonas de conflito, em particular a experiência de jovens chechenos que cometeram atentados em Moscou. A idéia é discutir com adolescentes suecos sobre quais ideais ou fatos poderiam levá-los a cometer um atentado suicida em seu país e, a partir dessa discussão, produzir uma série de vídeos que encenam esses “atentados”. Do ponto de vista psicológico, o trabalho apresenta uma problemática muito sensível para os jovens que vão participar, o que faz com que o processo de preparação seja mais longo do que eu imaginava. No momento todo o material está em mãos de psicólogos, que vão me ajudar a definir a forma de desenvolver o projeto sem que ele represente uma experiência traumática para os participantes.
Quais fontes de informação mais o inspiram: o noticiário, a internet, a ficção, a história?
No momento, mais do que tudo, estou interessado em duas narrativas que têm me ajudado a me aproximar de imagens muito difíceis de suportar, e que me auxiliam em meu desenvolvimento como artista ao me oferecer uma estratégia de trabalho. Trata-se de Time’s Arrow (A seta do tempo), de Martin Amis, e Adolf, de Osamu Tezuka. O livro de Amis narra a vida de um médico alemão nos anos 1980 em Nova York. Ele tem uma forma irracional de agir, mas depois de um pedaço do livro entende-se que os fatos ocorrem em sentido inverso ao tempo, do presente para o passado. Assim, ele se separa de uma mulher, depois a seduz e acaba por encontrá-la. Tudo ganha sentido quando o relato alcança a Segunda Guerra, e o personagem viaja à Alemanha para trabalhar como médico em Auschwitz. Como a progressão retrocede no tempo, ele não ajudará a matar, mas tirará as pessoas das fossas para levá-las aos fornos que lhes devolverão a vida; o Banco da Alemanha fará uma doação em ouro, os médicos voltarão a colocá-lo nas bocas das pessoas, e assim até que todas as famílias estejam reunidas e de volta às suas cidades de origem. Essa narrativa fez com que, pela primeira vez na vida, eu pensasse nos funcionários de um campo de concentração nazista como pessoas. Amis não é um revisionista, mas nos obriga a pensar em outra história possível – em vez daquela que nos acostumamos a escutar e sofrer – com uma única e elegante manobra, que é passar a narrativa como se fosse um filme que se projeta para trás. Adolf, de Osamu Tezuka, é um romance gráfico que conta as histórias de Adolf Kamil, um garoto judeu que cresceu no Japão, Adolf Kaufman, um menino de sangue japonês e alemão que vive na Alemanha, e Adolf Hitler. Além de conter elementos fantásticos, a história é uma visão japonesa da Segunda Guerra e do nazismo.
Em uma entrevista ao diário uruguaio La República, você disse estar construindo uma “caligrafia da violência”. Como ela está sendo composta?
A “caligrafia da violência” tem dois níveis. Na época da entrevista ao jornalista Nelson Di Maggio, me referia a um trabalho que agora pertence à Biblioteca de Alexandria, no Egito. É uma obra em progresso, composta por livros. No momento, há dois volumes: Kalashnikov e M16. O termo caligrafia se refere ao simples fato de que esses dois livros estão “escritos” por essas armas. Um encadernador preparou dois volumes, de acordo com o meu desenho. Cada bloco de folhas foi submetido ao tiro de uma dessas armas que, ao atravessá-lo, gerou uma particular “caligrafia”. Estou preparando o terceiro volume, que vai ser “escrito” pelo rifle de precisão de um franco-atirador. Agora, falando de minha obra em termos mais gerais, a “caligrafia da violência” se refere a imitar cada vez mais o olhar de quem se expressa pelos meios mais violentos que conhecemos hoje – e que, em geral, são os exércitos nacionais ou transnacionais, em defesa de interesses nacionais ou transnacionais.