Entrevista Denise Mota, 2008

Todo artista tem de ir aonde o povo está?

Esta pergunta nos coloca de cara com uma questão importante para o grupo, a distinção entre povo, multidão e massas*. O povo tem sido tradicionalmente visto como uma concepção unitária, onde as diversidades são reduzidas a uma unidade. A multidão, em contrapartida, é múltipla, composta por inúmeras diferenças internas que nunca poderão ser reduzidas a uma unidade identitária única. A multidão é uma multiplicidade de todas as diferenças singulares. As massas são compostas por todos os tipos de espécies, mas sua essência é a indiferença: todas as diferenças são submersas e afogadas nas massas. Se a multidão não é uma identidade (como o povo), nem uniforme (como as massas), suas diferenças internas devem descobrir o comum que lhe permite se comunicar e agir em conjunto. Se pararmos então para refletir sobre a arte como sendo parte da produção do comum, e a multidão como singularidades que agem em comum, acreditamos que a arte participa da mesma proposta da multidão, criar e agir em prol do comum. É neste lugar que o BijaRi se coloca.

É obrigação do artista discutir a realidade?

De um jeito ou de outro, todo artista coloca sua própria realidade em discussão. Nossa formação em arquitetura nos impele a um constante embate com a cidade. O exercício de viver o cotidiano criticamente faz com que você seja atravessado por uma série de estímulos e tensões. As intervenções surgem de uma urgência que tenta abarcar a diferença entre como você enxerga uma possibilidade para a realidade e como ela é, ou seja, tentamos inscrever uma outra possibilidade de ver o mundo, de viver com ele, de dar sentido a ele. É nessa frágil trincheira que nos colocamos, tentando avançar a criação sobre a aridez que rege as relações e o imaginário urbano contemporâneo e buscando produtos imateriais, subjetividades e afetos que negam as formas comprometidas pela acumulação capitalista. 

Em doze anos, que trabalho se constituiu no maior desafio para o grupo, tanto em termos artísticos como logísticos?

O trabalho feito junto ao edifício Prestes Maia – que foi a maior ocupação vertical da América Latina, com mais de 3 mil pessoas. Esse projeto durou cerca de quatro anos e contou com dez ações do BijaRi e mais de cem de outros coletivos e movimentos artísticos. O mais engraçado é que em nenhum momento vimos essas ações como um projeto; elas resultavam de uma urgência que nos impelia a agir na realidade e a tentar transformá-la, com nossas ocupações subjetivas, com nosso corpo. Em 2003, houve a primeira exposição de artistas no edifício. Foi uma entrada extremamente discutível se pensarmos em termos de colaboração real. Demorou muito até que se pudesse compreender o papel de cada um nesse processo de troca entre artistas e movimento social. Os artistas entenderam que a melhor arma que possuem são as “artísticas”, onde estratégias, formas e subjetividades tornam-se poderosas. Compreendemos também que o aprendizado político e de organização de um grande número de pessoas em rede foi o grande ponto de troca oferecido pelo movimento. 

O BijaRi cria sobre as relações entre indivíduos e com a cidade, e tem São Paulo como lugar central de investigação. Em que outra cidade gostariam de construir um trabalho?

É muito difícil para um artista que trabalha com intervenções urbanas fazer outras intervenções em estados e países que não os seus. Nossa maneira de desenvolver projetos de arte pública sempre buscou uma ligação íntima com o contexto onde ela intervirá (seja ele social, político, arquitetônico, etc.). Por isso atualmente acreditamos em projetos que nos possibilitem uma vivência longa. Não é impossível fazer trabalhos fora, mas se necessita de tempo, pesquisa e sensibilidade. Acreditamos que as cidades latino-americanas têm mais a nos oferecer, tanto pela proximidade sociológica e estética como pela URGÊNCIA que sentimos de fazer perceber essas fissuras, de reforçar outras relações comuns à cultura latino-americana. 

Além do tropicalismo, quais são suas influências?

Inicialmente o coletivo se chamava Fábrica da Bijari, em referência à Factory de Andy Warhol (multiplicidade de linguagens e iconografia pop), e à brasilidade indígena (Bijari é um nome tupi). Uma atitude já fruto da antropofagia e do tropicalismo brasileiros, em que as diversas referências culturais estrangeiras são transformadas sob a ótica da cultura local, tornando-se matéria-prima. Com a formação arquitetônica, o legado situacionista se tornou imprescindível, e processos como a deriva e psicogeografias cada vez mais fizeram parte dos procedimentos do grupo, diluindo as fronteiras entre arte, política e realidade para criar estratégias de intervenção. Em política e filosofia, transitamos pelo legado Nietzsche-Espinosa-Deleuze e por fim na trupe da multidão, como Negri e Hardt. Alguns críticos como Brian Holmes, Marcelo Expósito e Suely Rolnik (que colaboram para as revistas Multitud e Brumaria) são interlocuções importantes. No mundo pop e do entretenimento, diretores de clipes como Michel Gondry, Spike Jonze, Chris Cunningham e Lars Von Trier, designers como David Carson, Neville Brody e Saul Bass, e xilogravuras de cordel. Demos a volta e chegamos ao tropicalismo de novo!!!

Vocês já disseram que movimentos sociais são mais importantes em sua interlocução do que críticos e curadores. O circuito de arte brasileiro não consegue apreender manifestações artísticas de conteúdo político?

Quando o BijaRi começou, nossos trabalhos pretendiam a independência institucional, sem nenhuma relação com o “mundo da arte”. Nosso esforço se concentrava em produzir transformações reais na esfera pública. Quando começamos a descobrir (principalmente fora do Brasil) artistas e críticos com os quais tínhamos afinidades, ficou claro que não estávamos contra o mundo da arte, e sim com uma dificuldade de interlocução dentro do sistema de arte brasileiro. Movimentos sociais, psicólogos e arquitetos começaram a ser mais importantes na nossa interlocução do que os críticos e os curadores locais, que normalmente olhavam nosso trabalho pelo viés formal, não tinham tanto interesse por sua real intenção e potência. A questão que se colocou para nós foi: como e por que se relacionar com curadores e instituições? O diálogo é necessário para construir um saber compartilhado. É nesse espaço que a arte política e a crítica brasileira se encontram: sem um bom diálogo. Hoje em dia sabemos que essas perguntas sobre participar ou não do “mundo da arte” são um falso problema. A questão é como dialogar criticamente com as instituições e com o capital. A chave está em como manter a integridade do projeto e continuar intervindo nesse contexto. Muitos museus e galerias fora do Brasil contribuem de forma positiva para o desenvolvimento de processos artístico-políticos. Aqui, os contornos entre capital e arte são menos definidos, e é mais difícil conseguir obter apoios. É preciso ter muito claro o projeto e as maneiras de viabilizá-lo, sem perdê-lo nem vendê-lo. É como andar sobre um fio de navalha.

Um cliente comercial do coletivo apoiou a ação de protesto contra a visita de Bush. Vocês já perderam trabalhos comerciais por causa do conteúdo político de sua arte?

Esta é uma questão bem interessante. O BijaRi adota uma postura simples – e ao mesmo tempo radical, aqui no Brasil – em relação à divisão entre trabalhos comerciais e autorais. Assumimos claramente a contradição de fazer ao mesmo tempo trabalhos artístico-políticos e corporativos. Para alguns artistas, somos uns vendidos, extremamente comerciais; para o mundo comercial, somos artistas demais. Nesse pequeno espaço nos estabelecemos, acreditando que é possível fazer arte de qualidade e independente, pagando a pesquisa das mesmas com o dinheiro de trabalhos comerciais. Algumas vezes percebemos um incômodo em algum cliente comercial, como, por exemplo, a censura que nos foi imposta pelo Skol Beats em 2005. Fomos chamados para fazer a apresentação de live images no palco principal e recebemos um comunicado que nos impedia de passar imagens políticas, de religião, futebol e sexo. Na maioria dos casos de relação com clientes comerciais, acontece o contrário: uma admiração pelo trabalho artístico, mesmo ele sendo muitas vezes ácido.

Em que trabalho(s) o BijaRi está envolvido?

Em julho, faremos a performance Multidão zero, com trinta pessoas, na Galeria Vermelho, dentro do evento Verbo. O trabalho discute a temática dos protestos, quarenta anos depois de maio de 68. Outros projetos são:
Natureza urbana: parceria com o arquiteto José Subero (da República Dominicana). Na mostra Galerias Subterrâneas, em Curitiba, ocupamos galerias em terminais de ônibus e transformamos um outdoor publicitário em jardim vertical. A obra foi concebida para São Paulo, que atravessa uma mudança de paradigmas visuais com a retirada da publicidade. 
Disk mobilidade: continuando a proposta de intervenções que discutam a natureza urbana, criamos para o Motomix 2008 um projeto de jardins móveis em caçambas usualmente utilizadas para carregar entulho na cidade. As caçambas foram transformadas em jardins com imagens. 
Entropicália: remixada e amplificada: apresentaremos um audiovisual inédito que remixa o movimento tropicalista, aproximando o experimentalismo e a política de nossa contemporaneidade, no Itaú Cultural.
Visionários: com curadoria de Arlindo Machado, entre outros, setenta artistas latino-americanos experimentais foram selecionados para a mostra, que tem início em agosto aqui no Brasil e viaja dois anos pelo mundo.

* O conceito de multidão do qual estamos fazendo uso foi desenvolvido por Michel Hardt e Antonio Negri, publicado no livro Multidão, guerra e democracia na era do império, Editora Record, 2005.