Entrevista Denise Mota, 08/2008

Sua criação dialoga com a história da arte e aborda contingências históricas brasileiras. Qual das duas histórias o inspira mais?

Sempre encarei o estudo da arte como um fenômeno transdisciplinar, onde são considerados todos os saberes que se debruçam sobre a experiência humana, como antropologia, psicologia, filosofia, sociologia, história, etc. Relaciono-me com temas e objetos de pesquisa através de uma imersão abrangente; me movo pela curiosidade, pelo prazer da investigação e da invenção. Compreendo que a arte funciona como tradutora de estruturas mentais e, portanto, permite ao artista percorrer determinadas permanências do imaginário ocidental, cuja utilização da fonte histórica é vista em uma perspectiva de extrair coincidências e representações arquetípicas. Quando comento a decadência econômica da Bahia colonial, não estou interessado em reconstruir um momento histórico, mas em encontrar, no passado, possíveis leituras para a contemporaneidade. Como, por exemplo, no plano social, a abordagem que faço das questões de ordem civil só tem sentido dentro de um diálogo com as “origens” dessas questões: racismo, miséria, falência econômica, etc. Busco sentidos, significados, exercitando o “pensamento livre” e criativo. Isto é, a possibilidade de ressignificar referências a partir de leituras diversas. Boa parte da minha produção artística lança um olhar sobre a história da minha “aldeia”, lembrando Homo Bhabha sem a “nostalgia do viver”, pois tenho necessidade de me relacionar com o mundo em que eu vivo e que me dá sentido. Esse mundo não é pequeno como um quintal, ele é grande, vasto, complexo e muitas vezes obscuro. A história não só me inspira, mas também acompanha minha vida e minha produção, e informa meu olhar e meus comentários artísticos.

A cultura baiana é atravessada por um sem-fim de influências, também relacionadas à idéia de brasilidade. No memorial de sua pesquisa de mestrado, você diz que busca fugir de uma leitura “folclorizada” da realidade local. Como se dá essa fuga no seu processo criativo?

Como artista e pesquisador, ousei construir uma síntese pessoal sobre as diversas conjunturas e estilos presentes na atividade artística na Bahia até a contemporaneidade. Nessa experiência, consegui localizar o momento da minha inserção no movimento artístico regional, ao tempo em que se tornaram claros quais eram os meus compromissos estéticos com a cultura afro-baiana. Deriva daí a retomada de uma leitura menos folclorizada da realidade local, presente em obras de artistas de diversas gerações, que romperam com a emblemática oficial da baianidade. Essa postura artística, à margem do que ideologicamente se constituiu enquanto tradição reconhecida pelas instituições culturais locais como “a arte baiana”, descortinava novas leituras do universo popular que se mostraram importantes para a criação da minha estética.

Você vem trabalhando bastante com elementos como carne, açúcar e dendê. Por quê?

Porque são materiais vivos, orgânicos, estão em constante transformação e podem apresentar, de forma mais direta, a minha “imaginação raciocinada”. Somado a isso, todo o seu significado simbólico na religião, na história e no cotidiano baiano. O açúcar foi a matéria que utilizei para falar da crise do antigo sistema colonial português, momento em que, para mim, os “segredos internos” da identidade cultural brasileira passam a se revelar. A carne de charque tem significados polivalentes: é o ingrediente primordial que garante a força mística à feijoada de Ogum, um deus negro, assim como um alimento resistente, como a carne do corpo de nossos escravos que foram marcados a ferro. O charque fala da dor da miséria nordestina e da fome. O dendê é o sangue, o esperma dourado de Exu, é o Atlântico, o útero negro gestor da categoria racial. É o mar onde voam meus condores da liberdade atlântica.

O dendê é o material mais recorrente em sua obra, como tinta, símbolo, envoltório corporal. Intimamente vinculado com a história dos negros no Brasil, o dendê representa, simbolicamente, o eixo de suas preocupações e interesses éticos e estéticos?

Por se tratar de um material tão rico e complexo, em todas as suas dimensões físicas e simbólicas, ele vem demandando uma atenção especial. É um material quente, de forte aroma e incontrolável, que impregna as ruas, os lares e os templos baianos. O dendê é o “sangue vegetal” oferecido às divindades em grande parte de seus rituais. Tenho tentado, com o dendê, denunciar questões culturais baianas mais complexas. Também sou fascinado por sua cor, penso em Oiticica, Klein e Rothko, na revelação do sentido espiritual da cor. O dendê é um eixo de minhas preocupações éticas e estéticas, sim. Ele é o líquido vital, o sêmen, o sangue e a saliva do corpo cultural baiano.

Você também é professor de várias disciplinas, entre elas desenho. Como a experiência afeta sua produção artística?

A universidade é um território muito propício para minha produção, pois ela reúne, agrega muitos saberes. Além disso, sou um beuysiano, acredito no poder pedagógico da arte como elemento transformador, e em todos os momentos do meu itinerário artístico a docência caminhou lado a lado. A sala de aula é um espaço muito potente para o diálogo, o ensino; a pesquisa e a extensão são fundamentais para o aprofundamento das minhas investigações estéticas sobre a pluralidade das matrizes culturais baianas.

Aos onze anos, você se proclamava militante comunista. Sua arte é um meio de militância?

Primeiro Marx depois Beuys, aí você não pode esperar outra coisa. Há arte sem política? Há criação sem aldeia, sem quintal? Isso me faz lembrar da “conferência sobre o compromisso” de Cage, quando ele nos pergunta: “É verdade que, quando um assassinato é cometido, cada um de nós é o assassino? Então, não devíamos ser mais generosos uns com os outros?” Sou da turma utópica, que compreende a arte de forma ampliada – definir a arte como qualquer tipo de ser e fazer; designar todo o tecido social, inclusive a política, como uma escultura social. A ação artística estabelece relações estreitas com a política. Mesmo que ela não gere grandes mudanças, pode ser uma estratégia contra as lástimas deste mundo.

Qual a sua avaliação do panorama das artes visuais na Bahia hoje e da inserção de suas obras nesse cenário?

Não me sinto à vontade para fazer avaliação, mas, como membro ativo da comunidade artística da Bahia desde a década de 1980, posso tecer alguns comentários sobre a política cultural patrocinada pelo estado da Bahia na década de 1990, no tocante à arte contemporânea, onde me situo. Em primeiro lugar, observou-se nos gestores da política um não-reconhecimento desse tipo de manifestação. As intervenções que trilham caminhos criativos distintos dos suportes tradicionais da obra de arte foram sistematicamente negligenciadas pelas instituições oficiais de cultura. Com essa postura, foram condenados ao ostracismo e à invisibilidade diversos talentos desse campo das artes, tendo sido responsável, indiretamente, pelo desencanto profissional de vários artistas. Vivemos hoje um bom momento político-cultural em todo o estado. Um afinamento entre o estado e o governo federal. Novas idéias, novos gestores, e isso está fazendo aflorar grandes talentos da arte que estiveram por um bom tempo em estado de latência. A nossa auto-estima está se elevando, e novos nomes se destacam no cenário nacional e internacional. Temos muito o que fazer, principalmente tentar garantir sustentabilidade sem cair no mercadão das artes. Penso eu: por não termos, nas artes visuais, um mercado forte, como a música, temos maior espaço para a diversidade criativa. A minha produção sempre teve um espaço, tenho um seleto grupo de fruidores que acompanham minha criação. Isso é muito gratificante, pois acho que posso abrir muitas veredas por essas bandas com a arte contemporânea. Estou entrando aos poucos no mercado e já consigo vender o meu dendê e a minha carne-seca. Salvador, também, é uma boa vitrine para o mundo. Tenho negociado com colecionadores e museus internacionais, assim como recebido convites para participação em mostras importantes fora do estado.

Em que obra você está trabalhando agora e quando e onde ela poderá ser vista?

Atualmente estou trabalhando em três projetos, todos envolvendo performance e vídeo. O primeiro faz parte da série Regresso à pintura baiana, é intitulado A chuva de epô, uma videoinstalação com três canais que apresenta uma chuva de dendê sobre a paisagem da cidade de Salvador, uma homenagem a Yves Klein, Oiticica e Iansã. O segundo projeto chama-se Bori, trata-se de uma performance onde iremos ofertar comida para a cabeça de vários deuses negros. Um trabalho entre o sagrado e o estético. Requer uma grande elaboração na preparação de diversas oferendas. O terceiro trabalho é uma missa de morte que quero fazer para Márcia X, com a utilização de membros do afoxé Filhos de Gandhi. Deverei apresentar esses trabalhos aqui em Salvador entre 2008 e 2009 em uma galeria e em museus. Estou na fase de pré-produção e de captação de recursos para os trabalhos mais complexos.