VIDEOBRASIL 40 | 2º Videobrasil

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postado em 19/10/2022

 

O Videobrasil no contexto das Diretas Já

 

Um ano após a realização do I Festival de Vídeo Brasil, com impacto significativo no cenário nacional em 1983, o II Festival Fotoptica-MIS de Vídeo Brasil* aconteceu em São Paulo entre os dias 20 e 26 de agosto de 1984, mais uma vez no Museu da Imagem e do Som. Seguindo o formato da primeira edição, mas expandindo sua escala, o evento teve novamente uma mostra de tapes (mídias analógicas de produção de vídeo utilizadas à época) em concurso; uma mostra de tapes fora de concurso; workshops, debates e mesas-redondas; a apresentação de videoinstalações e de uma pequena exposição de “caricaturas eletrônicas”; além de uma performance de Otávio Donasci na abertura. Entre as novidades estavam uma incipiente mostra internacional e, destacadamente, o Vídeo Mercado, uma espécie de feira para produtores, emissoras de TV, revistas, videoclubes e instituições culturais trocarem experiências e fecharem negócios.  

 

 

Muito além de acompanhar as transformações tecnológicas que se faziam notar a cada ano, o Vídeo Brasil (como era grafado à época) acompanhava um momento de engajamento e fortes mudanças na sociedade brasileira, com o movimento das Diretas Já, a demanda crescente pela redemocratização e o consequente - e conturbado - processo de abertura política. A efervescência se fazia notar já nos textos de apresentação do evento: “O II Festival coincide com um período de transformações em nosso país - econômicas, políticas e sociais. Estamos curiosos e atentos, mais exigentes e insatisfeitos e queremos saber das coisas, já. Somos hoje um público mais sofrido e crítico e queremos ver os dois lados da moeda”, pontuava o fotógrafo e cineasta Thomas Farkas, então presidente da Fotoptica, principal patrocinadora do evento.

Nas telas, os temas ligados à luta democrática permeavam vários dos vídeos exibidos; em alguns casos implicitamente e em outros de modo bastante direto - o que resultou novamente em agruras com a censura, vigente no Brasil até 1988. Ainda assim, não deixaram de ser exibidas produções como O silêncio - Maluf inédito, na qual o ex-prefeito de São Paulo e então deputado surge em um longo silêncio ao ser perguntado por Miriam Leitão se "o ministro Delfim é um tecnocrata inútil”; Diretas na Sé, de Roberto Elisabetsky, que registra o comício que reuniu em São Paulo mais de 300 mil pessoas exigindo eleições diretas para presidente; Rio em fevereiro, de Tuca Moraes, também filmado em uma passeata no início de 1984; e Pra quê o título?, obra que trata da luta de um personagem para se reintegrar à sociedade após 20 anos de isolamento provocado pela repressão política.

 

 

Segundo Solange Oliveira Farkas, fundadora e diretora do Videobrasil até hoje, o tom crítico em relação à TV aberta, marcante na primeira edição, se apaziguou no segundo ano, já que produtoras independentes e diretores de vídeo começaram a se aproximar das emissoras do país. Coletivos se profissionalizavam e adentravam – de modo ainda tímido - os antes inacessíveis espaços nas TVs Cultura, Manchete ou Gazeta, com programas como o célebre Fábrica do Som (TVDO) ou o quadro do repórter Ernesto Varela, personagem criado pela Olhar Eletrônico.  

Havia certa esperança no ar, como se nota no texto do então secretário de Cultura do Estado de São Paulo, Jorge da Cunha Lima: “Este festival é uma pequena mostra desse mundo que se multiplicou depois do funeral do Super 8. Pode ser o grande passo para a produção independente que tornará irreversível a democratização da telecomunicação no Brasil”. 

A imprensa e a crítica

A cobertura da imprensa mais uma vez foi intensa, assim como no ano anterior. O Estado de S.Paulo anunciava: “O vídeo veio para ficar”; na Folha de S.Paulo, a chamada era “Festival quer abrir as portas do mercado para o vídeo independente”, com uma matéria secundária intitulada “Do quieto Maluf ao beijo ardente, um grande show”. Com a estreia da mostra internacional - que apresentou obras de importantes nomes como o coreano Nam June Paik e a alemã Ulrike Rosenbach - o festival ganhou também seus primeiros artigos na mídia estrangeira. Entre eles, a italiana Videomagazine destacou: “O vídeo independente no Brasil está movendo as águas, despertando interesse e entusiasmo”.

O festival também não passou imune à crítica, em uma época de intensos debates nos cadernos e revistas de cultura. Se Rubens Ewald Filho cravou que a edição foi um sucesso, o título do artigo de Gabriel Priolli era menos favorável: “Muita festa na plateia e amadorismo na tela”. As principais críticas giravam em torno da percepção de que artistas e produtores ainda não haviam conseguido desenvolver uma linguagem própria ao vídeo, demonstrando pouca criatividade no uso dos novos equipamentos.

 

 

Com o vertiginoso crescimento no número de filmes inscritos, de fato chegavam trabalhos de níveis técnicos e criativos muito variados - o que não deixava de ser um resultado desejável da democratização dos novos equipamentos. Se no primeiro festival foram inscritos 78 vídeos (com 36 selecionados para a Mostra Competitiva) na segunda edição foram 120 inscritos e 60 selecionados. Entre eles estavam trabalhos de várias regiões do Brasil, de nomes como Alfredo Nagib, Artur Matuck, Carlos Ebert, Celso Fioravante, Eder Santos, Gil Ribeiro, Leonardo Crescenti, Lucila Meirelles, Marina Abs, Noilton Nunes, Olhar Eletrônico, Pedro Vieira, Rita Moreira, Ruth Slinger, TVDO e Walter Silveira.     

Entre os vários temas tratados - para além dos já citados ligados à luta pela abertura política - estavam majoritariamente trabalhos que se referiam à situação social no Brasil, às transformações tecnológicas e às liberdades comportamentais e sexuais - desde reportagens até trabalhos mais poéticos e experimentais. Dos dez premiados pelo júri, os primeiros foram: Ivald Granato in performance, de Tadeu Jungle e TVDO, filme que acompanhou o camaleônico artista visual em ambientes urbanos; Lixão do Alvarenga, em que os jornalistas Caco Barcellos e Kico Gemael retratam a situação de miséria em que viviam pessoas no aterro sanitário do Alvarenga; Beijo ardente - Overdose, de Flavia Morais e Hélio Alvarez, história de um vampiro que mistura terror e humor; e, o grande vencedor do festival, Eletricidade, de Alfredo Nagib, Eletroagentes e Videoverso. Neste pequeno documentário poético, seres humanos passam a ser manipulados por controle remoto, em obra que traça uma visão futurista da eletricidade a partir do universo musical do compositor e performer Kodiak Bachine.

A criação do Troféu Bicho de Goiaba, premiando as obras consideradas mais bem-humoradas da edição, apresentava ainda um outro caminho relevante para o vídeo, que influenciou uma série de programas humorísticos de TV nos anos 1980 e 1990. Entre eles estavam Os Inconsequentes, de Louis Chilson, com o pacato personagem Zezinho; Mundo Animal, de Fabio Vieira e Sergio Salles Filho, um documentário satírico sobre o lazer no campus da USP; e Radar III, de Eduardo Abramovay, Gil Ribeiro e Videoverso, uma reportagem sobre a prática do aikidô e sobre os usos da medicina popular.

 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

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Imagens: Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do primeiro Videobrasil, por Kiko Farkas.

Galeria 1
1. “A Máscara Eletrônica”, performance de Otávio Donasci.
2. Público circula pelos espaços do MIS.
3. Marina Abs recebe prêmio do fotógrafo Aloysio Raulino.
4. Otávio Donasci.
5. Instalação "Nossa Senhora!", de Tadeu Jungle e Walter Silveira.

Galeria 2
1. Cena de “Eletricidade”, de Alfredo Nagib, Eletroagentes e Videoverso.
2. "Beijo ardente/Overdose”, de Flavia Moraes e Hélio Alvarez.
3. “O Silêncio - Maluf Inédito”, de Miriam Leitão e Abril Produções.
4. “Ivald Granato in performance”, de Tadeu Jungle e TVDO.
5. “Os Inconsequentes”, de Louis Chilson.
6. "Diretas na Sé”, de Roberto Elisabetsky.
7. “Grafite efêmero”, de Marina Abs.