VIDEOBRASIL 40 | 11º Videobrasil

A+ a-
postado em 02/05/2023

Homenagem a Nam June Paik, expansão geopolítica e novas tecnologias marcam edição

   

Pai da videoarte, o coreano radicado nos EUA Nam June Paik já havia aparecido, de diferentes modos, em algumas das dez primeiras edições do Videobrasil: seja com seus vídeos exibidos nos festivais de 1987 e 1992; como personagem de obras de outros realizadores; ou como tema de debates e mesas-redondas. Mas é no 11º Videobrasil Festival Internacional de Arte Eletrônica*, realizado entre os dias 12 e 17 de novembro de 1996 no Sesc Pompeia, que o artista ganha um destaque à altura de sua importância no meio do vídeo, da televisão, da comunicação e das artes visuais e eletrônicas de modo geral. Sua obra, incluindo grandes instalações, dava o tom de uma edição com foco na produção experimental e tecnológica e no diálogo com a performance, as artes sonora e visual.

 

 

Após anos de formação e atuação no meio musical, Paik apresentou em 1963, em Wuppertal (Alemanha), seu primeiro trabalho diretamente ligado ao campo televisivo, com monitores, sons, trabalhos escultóricos e ambiente imersivo. Na ocasião do 11º Videobrasil, portanto, o artista já trazia na bagagem 33 anos de pesquisa e produção, sem nunca deixar de ser uma referência de vanguarda. “Paik não é apenas o fundador da videoarte, é um dos artistas mais importantes da cena contemporânea”, dizia Lori Zippay, diretora do centro Electronic Arts Intermix de Nova York e curadora de duas mostras dedicadas ao artista no festival, reunidas sob o título À Espera do Século 22: Uma Presença Virtual no Videobrasil 96.

A primeira mostra, intitulada The Beatles, McLuhan & The TV Cello reuniu alguns dos primeiros vídeos de Paik, entre eles o clássico Global Groove (1973), trabalho seminal da videoarte e espécie de manifesto radical sobre a comunicação global em um mundo saturado pela mídia e pela iconografia pop. A segunda programação, mais ampla, trazia desde vídeos caracterizados pela manipulação eletrônica e pela subversão da linguagem televisiva até registros de trabalhos feitos por Paik em tributo a artistas notórios e parceiros que o influenciaram, como John Cage, Joseph Beuys e Charlotte Moorman. Boa parte deles havia integrado ao lado do coreano o Fluxus, movimento artístico multidisciplinar de cunho libertário e contracultural que, entre outros, se destacou pelos happenings e performances.

Pelo modo impactante como ocuparam o espaço expositivo do Sesc Pompeia, as instalações do artista foram o grande destaque de sua participação no festival. Três delas foram adaptadas para o Brasil: em TV Buddha (1974), Paik substituiu a estátua de um buda pela de um preto velho, disposto sentado em frente a uma televisão que exibia sua própria imagem; TV Garden (1974-1978) espalhou 30 monitores em meio a bromélias e outras plantas da fauna brasileira; TV Fish (1979) reuniu aquários com pequenos peixes tropicais e os expôs ao lado de televisores que transmitiam peixes e aviões. A quarta instalação, TV Moon (1976-1996), foi montada por Paik em uma versão bastante alterada para o Videobrasil. Nela, através de sete monitores e um videoprojetor, o artista evoca as fases da lua, com imagens luminosas e circulares que se moviam simultaneamente.

A performance Vídeo Ópera para Paik, realizada por dois importantes colaboradores do artista – a islandesa Steina Vasulka, cofundadora do teatro eletrônico The Kitchen, e o norte-americano Stephan Vitiello – fechava a programação dedicada a Paik no festival. No teatro do Sesc Pompeia, no célebre espaço projetado por Lina Bo Bardi, Vasulka tocava um violino e, a partir de seus sons, comandava uma grande tela com imagens de performances do coreano.

As instalações de outros quatro artistas também se espalharam pelo espaço expositivo, em meio aos espelhos d’água da fábrica. Do francês Michel Jaffrennou, a “ópera eletrônica” Pierre et le loup (baseada na obra clássica de Prokofiev) mesclava cenários virtuais 3D e atores reais, em um vídeo exibido ao lado das pinturas do storyboard da obra; enquanto a videoescultura Le Plein des Plumes mostrava parte da engenhosa construção plástica do francês. Já o japonês Keiichi Tanaka, dono de uma obra “futurista”, se utilizou de contadores Geiger – captadores dos níveis de radiação – para montar Luminous Cosmic Rays, instalação sonora e luminosa que “traduzia uma mensagem do universo”. Entre os brasileiros, Inês Cardoso criou Daragóy, misto de instalação e performance que, em suas palavras, tratava-se “de uma caprichosa colagem de linguagens em busca da manifestação do amor”.

Mas o grande burburinho se deu em torno do trabalho de Cao Hamburger, responsável por trazer um vasto público infantil e adolescente ao 11º Videobrasil e, com isso, incentivar a visitação recorde de 30 mil pessoas na edição. A instalação Vídeo Zoo, criada em parceria com Carlos Barmak, Vera Barros e Pedro Mendes da Rocha, criava uma espécie de Arca de Noé moderna, na qual grandes figuras de animais com câmeras acopladas podiam ser manipuladas, gerando imagens transmitidas ao vivo em monitores de TV. A obra ganhou destaque na imprensa da época: segundo o Jornal da Tarde, em matéria intitulada “Videobrasil vira programa legal”, nem mesmo “os adultos que acompanhavam seus filhos resistiam às cores fortes e ao ambiente propício a liberar a imaginação”. No festival, Cao Hamburger ainda levaria uma menção honrosa por seu vídeo O Menino, a favela e as tampas de panela, filmado no bairro de Paraisópolis, em São Paulo.

 

Performances e novas tecnologias

Seguindo a tradição do Videobrasil de apresentar e comissionar performances, a 11ª edição apresentou outras quatro obras do tipo, para além da ópera para Paik. Revelação do festival, o baiano Marcondes Dourado, com apenas 22 anos, surpreendeu com Bardo, trabalho que mistura teatro, dança, vídeo e elementos sonoros. Baseada em escritos de Antonin Artaud, a performance tematiza os anos de confinamento do dramaturgo francês em uma clínica psiquiátrica. Em Communion – Le Partage des Peaux II, a bailarina e coreógrafa canadense Isabelle Choinière comandava um espetáculo em que seus movimentos eram amplificados, através de sensores conectados ao corpo, para vídeos computadorizados projetados no teatro do Sesc.

Nome constante no festival, vencedor de prêmio nas edições anteriores, o mineiro Eder Santos apresentou com Paulo dos Santos e o grupo Uakti a performance Passagem de Mariana, que misturava música, dança e projeções para representar os sete pecados capitais. Por fim, Augusto de Campos, um dos pais da poesia concreta, se juntou ao videoartista Walter Silveira e ao músico Cid Campos para realizar a marcante Poesia é risco, performance ligada à sua produção “verbovocovisual” – termo que se refere às dimensões semânticas, sonoras e visuais da palavra.

Seja nas performances, instalações ou na programação da obra de Paik, o que se percebia era a constante evolução tecnológica que avançava a passos largos nos últimos anos. Mas foram algumas outras novidades da 11ª edição que deixaram essa evolução ainda mais explícita. Para além da consolidação do uso do CD-Rom nas atividades do festival – mídia de exibição audiovisual que trazia incipientes recursos interativos –, a internet surge pela primeira vez como aliada do Videobrasil em sua missão informativa e participativa. De um lado, tratava-se da primeira edição com um website, onde se tinha acesso à programação e aos textos do catálogo. Além disso, dentro do Sesc Pompeia, o Cyberspace (ou “café eletrônico”) foi uma das grandes atrações: em seis computadores para uso livre, o público tinha acesso à internet, com buscadores da época como Netscape e Altavista, e podia assistir a uma série de vídeos executados em CD-Rom.

Outro projeto ligado às novas possibilidades tecnológicas foi o Photo-in-Progress, capitaneado pelo inventor e impressor fotográfico Renato Cury. Em um vasto painel na área expositiva, Cury expunha fotografias registradas no próprio evento, impressas digitalmente quase em tempo real em uma base integrada ao espaço. O acervo ainda era, posteriormente, disponibilizado online. Por fim, sintonizado com as novas linguagens televisivas – em tempos de sucesso da MTV –, a sexta edição do Videojornal teve uma dinâmica diferente das edições anteriores. Com coordenação de André Amparo, a descontraída cobertura jornalística diária produzida pelo festival teve um diretor por dia: Sandra Kogut, Carlos Nader, Marcelo Tas, Inês Cardoso e o australiano John Gilles. 

 

Expansão geopolítica

Após a internacionalização em 1990, com uma seleção de trabalhos majoritariamente da América do Sul e Austrália nas edições seguintes, a Mostra Competitiva do Hemisfério Sul ampliou seu escopo para o Oriente Médio e selecionou vídeos de 14 países de diferentes continentes. O novo recorte partiu de uma percepção sobre a fluidez do conceito de Sul Global, referente mais a territórios marginalizados do que a nações situadas necessariamente ao Sul geográfico do globo. Desse modo, estiveram na mostra principal, pela primeira vez, vídeos da Argélia, Canadá, Eslovênia, Líbano, México e Nova Zelândia.

Destacada presença na história do Videobrasil a partir de então – ganhando inclusive mostras de vídeo e exposições individuais –, o libanês Akram Zaatari estreou no festival com Teach me, vídeo que debate o valor icônico da imagem a partir de cenas de conflitos exibidas em noticiários de TV. Outro estreante foi o argelino Malek Bensmaïl, que ganhou menção honrosa por seu Territoire(s), um confronto de imagens de arquivo, contemporâneas e de ficção que abordam a conturbada história política da Argélia. A dupla argentina Carlos Trilnick e Sabrina Farji chamou atenção com De Niño, um videopoema eletrônico sobre a infância, com referências ao horror em zonas de conflito como Chiapas (México) e Bósnia. Do Brasil, um dos mais aclamados foi 15 Filhos, de Maria Oliveira e Marta Nehring, documentário sobre a violência da ditadura civil-militar (1964-1985) com depoimentos de filhos e filhas de mortos ou desaparecidos políticos – incluindo as próprias diretoras.

As temáticas da guerra, da violência, da pobreza e do trauma que percorriam várias das obras parecia contrastar com o discurso predominante no mundo capitalista pós-Guerra Fria, que prometia uma realidade mais harmônica e uma globalização com benefícios para todos. Em 1996, cinco anos após o fim da URSS, não era exatamente o que se via, especialmente nos países pobres e em desenvolvimento.

Mesmo com a expansão geográfica da mostra, entre os dez premiados pelo júri os quatro primeiros foram obras nacionais – reflexo nítido da consolidação da produção em vídeo no Brasil. O primeiro lugar foi para Ogodô, de Marcondes Dourado (o mesmo de Bardo), um pequeno documentário gravado com travestis em uma quarta-feira de cinzas de Salvador. O segundo premiado foi o também documental O fim da viagem, de Carlos Nader, um ensaio visual sobre a rotina de um motorista de caminhão transportador de porcos. Nader apresentou, ainda, Trovoada, com participação de Waly Salomão (que será o homenageado da 22ª Bienal Sesc_Videobrasil). O terceiro lugar ficou com a mineira Patricia Moran, que em Adeus, América satirizava o descobrimento do Novo Mundo e as motivações dos colonizadores. Por fim, o prêmio Aliança Francesa – INA (Institut National de l’Audiovisuel), focado na produção digital, ficou com Milenne Tanganelli por sua animação poética Virtual World.

Para além da seção principal, as já tradicionais mostras informativas paralelas seguiam com seu papel de apresentar ao público brasileiro obras de vários cantos do mundo, de fortalecer o diálogo entre realizadores e de fomentar um mercado global para os artistas. Duas delas focavam em países sul-americanos: Olhares do Sul, projeto concebido por Carlos Augusto Calil, apresentou trabalhos de argentinos, chilenos e brasileiros como Vincent Carelli, Eder Santos, Sandra Kogut e Jorge Macchi; a mostra de obras do Festival Franco-Latino-Americano, por sua vez, reuniu cerca de 50 vídeos dos mesmos três países, além da Colômbia.

 

Com olhos abertos também para o Hemisfério Norte, o festival exibiu outras três mostras de destaque: See You Later: UK and Artists TV, com curadoria de Michael Maziere (diretor do London Eletronic Arts), reuniu trabalhos de jovens artistas – a maior parte ingleses – que se utilizavam do vídeo de modo irreverente e low tech. Entre eles, nomes que se consagrariam a partir dali, como Damien Hirst, Atom Egoyan e as irmãs Jane e Louise Wilson; a mostra Historic Video, curada por Kate Horsfield (do Video Data Bank de Chicago), apresentou trabalhos de expoentes da videoarte norte-americana realizados entre 1968 e 1977, como Bruce Nauman, Bill Viola, Gary Hill, Joan Jones e Richard Serra; por fim, um programa criado pelo austríaco Peter Payer juntava clipes curtos de artistas falando sobre suas obras. Os norte-americanos Yoko Ono e Dave Stewart Lawrence Weiner, o italiano Michelangelo Pistoletto e o austríaco Robert Jelinek estavam entre os depoentes.

A partir desta vasta e vigorosa programação, podia-se dizer que os tempos de questionamento e preconceito com o vídeo finalmente se esvaiam, após longas batalhas. Nas palavras de Danilo Santos de Miranda, diretor-regional do Sesc-SP, em texto para o catálogo: “Originário de uma dupla raiz, constituída pela invenção tecnológica e pela linguagem das telas, o vídeo, a partir de um território indiferenciado, projetou-se em ascensão rápida rumo à autonomia. (...) Balizou um território e criou um idioma personalizado, dotado de sintaxe peculiar e de articulações específicas. Consolidou-se, enfim, como uma nova forma de focalizar, revelar e interpretar o mundo. Mais que tudo, expandiu o universo da representação artística, adicionando-lhe um recurso marcado pela concisão”.

Sobre o festival, em uma edição com a presença de artistas de dezenas de países e um público recorde, a diretora artística Solange Oliveira Farkas afirmava com firmeza: “O Videobrasil criou raízes e a solidez de uma instituição nacional. Ampliou sua abrangência, assumiu-se como referência cultural, superou limites e simbolizou a consagração de uma nova tendência de expressão artística, de meio de comunicação e de exploração de novos recursos tecnológicos. Estabeleceu o fluxo de informação técnica e formal, tão necessária para dar substância à produção videográfica, numa época marcada pela carência de recursos e de acessos ao conhecimento”. 

Por Marcos Grinspum Ferraz

*a nomenclatura utilizada para intitular a principal mostra organizada pelo Videobrasil, hoje chamada Bienal Sesc_Videobrasil, passou por adequações ao longo dos anos. As mudanças se deram a partir da percepção dos organizadores sobre as características de cada edição, especialmente no que se refere ao seu formato; duração; periodicidade; parcerias com outras empresas e instituições; e à expansão das linguagens artísticas apresentadas. Os principais reajustes no título das mostras foram: inserção do nome da empresa parceira Fotoptica entre a 2ª (1984) e a 8ª (1990) edições; a inclusão da palavra “internacional” entre a 8ª e a 17ª (2011) edições, a partir do momento em que o evento passa a receber de modo intensivo artistas e obras estrangeiros; o uso do termo “arte eletrônica” entre a 10ª (1994) e a 16ª (2007) edições, quando se percebe que a referência apenas ao vídeo não dava conta dos trabalhos apresentados; a inclusão do nome do Sesc, principal parceiro da mostra nas últimas três décadas, a partir da 16ª edição; e a substituição de “arte eletrônica” por “arte contemporânea” entre a 17ª edição e a 21ª (2019) edições, a partir do momento em que o foco se expande para as mais variadas linguagens artísticas. A mais recente mudança significativa se deu em 2019, na 21ª edição, quando o nome festival é substituído por bienal, termo mais adequado a um evento que já vinha sendo realizado bianualmente e com uma duração expositiva de meses, não mais semanas.

_______________________________________________________________________________________ 

 

Imagens:
Acervo Histórico Videobrasil 
Renato Cury e Isabella Matheus/Acervo Histórico Videobrasil

1. Cartaz do décimo primeiro Videobrasil, por Kiko Farkas.

Galeria 1
1. Solange Oliveira Farkas e Nam June Paik.
2. “TV Buddha”, de Nam June Paik.
3. “TV Fish”, de Nam June Paik.
4. “TV Garden”, de Nam June Paik.
5. “TV Moon”, de Nam June Paik.
6. “Daragóy”, de Inês Cardoso.
7. Equipe de produção.
8. Equipe de produção.
9. “Bardo”, de Marcondes Dourado.
10. “De Niño”, de Carlos Trilnick e Sabrina Farji.

Galeria 2
1. “Trovoada”, de Carlos Nader.
2. O Cyberspace (café eletrônico).
3. “Vídeo Zoo”, de Cao Hamburger.
4. Eduardo de Jesus e André Amparo.
5. “Vídeo Ópera para Paik”, de Steina Vasulka e Stephan Vitiello.
6. “Passagem de Mariana”, de Eder Santos, Paulo dos Santos e grupo Uakti.
7. Diretores e artistas no Sesc Pompeia.
8. “O Menino, a favela e as tampas de panela”, de Cao Hamburger.
9. Eder Santos e Keiichi Tanaka.
10. “Ausencia”, de Ar Detroy.
 
Galeria 3
1. Thomaz Farkas, Danilo Miranda, Solange Oliveira Farkas e Paulo Ribeiro.
2. Akram Zaatari no Videojornal.
3. “O fim da viagem”, de Carlos Nader.
4. Inês Cardoso.
5. “Poesia é risco”, de Augusto de Campos, Walter Silveira e Cid Campos.
6. “Naturaleza Muerta”, de Guillermo Cifuentes.
7. “O beijoqueiro”, de Carlos Nader.
8. “Nuevas aventuras del Capitán Cardozo”, de Gabriel Yuvone e Pablo Rodríguez Jáurequi.
9. Lori Zippay. 
10. Stephan Vitiello.