Ensaio 10/2008

As fronteiras da imagem maquínica

Falar da obra de Marcello Mercado é tratar da história da criação audiovisual na América Latina. A amplidão de sua obra artística implica considerar os processos que convulsionam as relações tela/imagem/espectador, prazer/consumo, diegese/identificação, que Mercado respeita, ainda que as transgrida. Os vídeos de Mercado atravessam diversas fronteiras das enteléquias da imagem maquínica. A ilusão de realidade e de movimento através do registro da câmera é deslocada pela poética tecnológica de Mercado em seu relato sobre os processos de experimentação com a imagem.

Recordamos os primeiros vídeos de Mercado, por meio dos quais tomamos conhecimento de sua obra. The Torment Zone (1992) e Las nubes (1991) já mostravam diversidade em um sistema de trabalho baseado na imagem parada. As gravuras e desenhos na série iconográfica de bilhetes, jornais, estampas religiosas e radiografias eram processados por efeitos eletrônicos, em tempo real, com uma câmera Sony V 5000, a partir da qual se realizava um primeiro desenho gráfico do quadro. A reformulação de símbolos, a manipulação plástica da imagem era feita com equipamentos analógicos de pós-produção, tanto quanto com a própria câmera.

Os equipamentos disponíveis no começo dos anos 1990 suportavam somente uma determinada quantidade de camadas e gravações, uma vez que a qualidade da imagem se deteriorava rapidamente. Essa limitação já fazia nascer, para Mercado, uma estética de montagem, espacial e vertical, que culminava na proposta de um quadro complexo. The Torment Zone foi trabalhado no antigo formato tradicional de vídeo, de ¾ de polegada, o U-matic. Visualmente agressivo, apresentava a transfiguração sobre o que vemos e escutamos. A originalidade máxima havia sido alcançada pelo processo do estranhamento, no caminho do figurativo para o desfigurativo, pelo recurso à visão háptica; uma abstração que se convertia na leitura aguda de uma Argentina perversa, como poucas obras audiovisuais conseguiram na fatídica década de 1990.

The Warm Place (1998) marcaria o início do trabalho de Mercado com um computador pessoal, em âmbito privado, já sem recorrer mais a um estúdio de pós-produção. M.M. se converte no operador que trabalha sozinho com sua própria máquina durante longos períodos de tempo. Naquele momento, alguns comandos de manipulação complexa da imagem levavam uma enorme quantidade de tempo para realizar os cálculos requeridos para a composição, o chamado render. The Warm Place é um documento intenso e visceral que continuava a busca baseada no hibridismo do pictórico no eletrônico, mas através de processos de manipulação matemáticos/digitais.

Nos trabalhos realizados em vídeo analógico, Mercado já havia excedido os limites de uma tecnologia pensada para outros usos corporativos e artísticos. A ruptura do figurativo se baseava na ausência da típica cena com personagens dentro do quadro e em não recorrer a imagens em movimento captadas pela câmera. O processamento de materiais de arquivo, o desenho gráfico e a combinatória de imagens superpostas geram a fragmentação das convenções da associação literal entre som e imagem.

The Warm Place indicava, assim, outro ponto de inflexão no trabalho de Mercado, a combinação criativa entre vídeo e multimídia, que exacerba a estrutura de composição do quadro, evitando a transição, por corte, entre as imagens, apesar de estarmos sempre operando em duas dimensões no interior do quadro metamorfoseado pelos diversos programas que criam uma variedade muito ampla de capas, nos eixos horizontal e vertical.

Podemos interpretar esses processos como um metadiscurso sobre o uso de certos hardwares e softwares, primordial em Mercado a partir desse momento. A manipulação artística desses dispositivos estabelece parâmetros nos processos expressivos da imagem que transformam qualquer imagem ótica dinâmica realista, de câmera ou arquivo, em forma “desanalogizada”. Esses trajetos pelo corpo, pela morte, pela história, pelo desejo e pela loucura vão se construindo em um longo work in progress que rompe com a linearidade das relações espaço-temporais habituais.

Essas transições colocam em questão a noção de corte, de edição e de montagem, subvertendo os mandamentos do audiovisual clássico. Assim se propõem relações mais complexas entre as partes, que excedem o quadro e a cena como unidades de sentido. Esse sistema na composição vertical de imagens funciona como montagem dentro do quadro, com o que se consegue um espaço composto de muitas imagens, que resultam da manipulação algorítmica. É nessa interminável manipulação que se determina a forma final da obra. Algo que é uma formalidade temporária, porque, para Mercado, a operatória numérica audiovisual nunca está terminada, são etapas de seus extensos works in progress.

O antigo conceito de edição se reconverte em um processo que nunca tem fim. Estamos frente a um novo conceito de mise-en-scène que rompe com a idéia de obra original e de master. O parâmetro da profundidade de campo cuja gênese estava em um registro de câmera também é modificado por um processo de recomposição artificial dos planos a partir de sua combinação em camadas e da ruptura de uma visão ótica analógica. The Warm Place é, apesar de sua aparência bidimensional, um trabalho em relevo que resulta da estética descrita de composição vertical. Mercado se apropria, fagocita e transforma os usos das máquinas. Primeiro foi a máquina vídeo; agora é o computador pessoal. Recordemos que The Warm Place ganha o 12º Festival Internacional de Arte Eletrônica Videobrasil, o que implicaria outro reconhecimento importante em sua carreira artística.

Das Kapital (2004) surge do processamento em máquinas digitais de alto porte e com programas muito sofisticados. Estamos em outra instância tecnológica, com equipamentos que processam em tempo real ordens complexas de imagens. O recurso à obra de Marx apresenta uma forma diversa a partir da associação entre o computador, os processos de simulação textual e a pureza matemática de um discurso sobre o mundo, a economia política, o inconsciente e a epifania da imagem. Grande parte dos dezessete minutos de Das Kapital é formada por imagens geradas por computador. Uma série de pura abstração, que combina textos, fórmulas e fotografias, ao final, de uma crueza extrema, e sem qualquer tipo de manipulação. São fotos de cadáveres, corpos lacerados por ações violentas; é o realismo da morte como a inércia do tempo passado. Mercado emprega a eterna imagem fotográfica como testemunha do vivo, os corpos inertes culminam com toda a série de imagens numéricas não-figurativas. Esse contraponto é o efeito da estrutura da obra, em sua mistura de suportes na combinatória do fotoquímico e do numérico, como um relato do que pode fazer um artista operando com tecnologias e relacionando diversos dispositivos visuais.

É com sua obra The Chemical and Physical Perception in the Eye of the Cat, in the Moment of the Cut (2005), premiada no 16º Videobrasil, que podemos começar a fechar este breve panorama da obra de Marcello Mercado. Um vídeo que apresenta o nascimento das artes eletrônicas como via possível para o desenvolvimento de novas experimentações, que se apropriam da indústria química e biológica. Com animações tridimensionais e bidimensionais, que são resultado da expansão da prática pictórica para o computador, Mercado emula processos de decomposição biológica na ruptura do índex e ao operar ao máximo a imagem numérica.

A transformação de códigos traduzidos pelo computador em imagens sintéticas dá conta de uma nova linguagem audiovisual, revelando, por default, as duas vertentes que constituem a essência da imagem: a analogia com o real e a ilusão de movimento. Nessas obras, o não-dito, como texto, gráfico e som, se combina ao não-representado, como uma referencialidade que resulta da manipulação do aparelho eletrônico/digital. Esse rechaço do rastro de realidade do audiovisual, fotoquímico, eletrônico e digital é uma das marcas mais notáveis em Mercado, e que atravessa toda a sua obra.

A exceção é composta pela imagem da caixa de aspirinas e pela foto do cadáver com orifício de bala na têmpora. Duas analogias de mal-estares nas funções cerebrais. A meticulosa construção artesanal de múltiplos fragmentos gráficos que, no transcorrer do tempo, constituem as partes de um todo, em um processo de fuga do figurativo que se concretiza na construção da obra, criando, a partir do abstrato, uma profunda ruptura com as formas dos sistemas de representação. A obra de Mercado testemunha certos extremos discursivos, e expressivos, aos quais o vídeo pôde chegar. É nessa função da arte que se força o aparelho audiovisual a fazer o que não está inscrito em seu programa nem no sistema de representação, ou seja, uma ação que conquista novos espaços de independência criativa, valor em desuso no audiovisual do momento.

Jorge La Ferla e Anabel Patrícia Márquez Sanabria