Biografia comentada Marcio Harum, 2011

IT’S TODAY OR TOMORROW IN THIS CITY

Cada instalação ou projeção em vídeo dos trabalhos de Sebastian Diaz Morales (Comodoro Rivadavia, Argentina, 1975) faz ressurgir a presente dúvida, que parte do mesmo ponto desconhecido: se aquilo a que estamos assistindo é uma pesquisa documental, narrativa biográfica em tons fantásticos, jornalismo ficcional ou ode à paisagem (natural e urbana, em seu espontâneo papel de protagonista de um road movie interior). Ver a construção do seu pensamento sobre cinema nos conduz a perceber o que está adiante do espaço e tempo circunscritos nos vídeos e filmes do artista: o aperfeiçoamento de uma imaginação visual potente (sonora ou silenciosa). O movimento das imagens que capta e edita aproxima-se ora da atmosfera de um sombrio thriller psicológico, ora da leveza de cenas de um agradável diário de bordo, ora de um intenso field trip baseado em um contexto geopoliticossocial verídico e alheio. Comenta o passado ou o futuro como uma extensão clara do presente, sem frias análises interpretativas, mas deslocado para um mundo distante. 

Rever o conjunto de suas obras significa perceber genuínas transformações estruturais fílmicas, experimentadas além do que supomos ser apenas material bruto semidocumental. É como receber a própria confirmação das várias e insuspeitadas qualidades de um ensaio ou até mesmo de uma bem-sucedida adaptação literária. O que gera movimento, em seu trabalho, é o desejo de desvendar e reencenar situações originárias de um mundo invisível. 

Resampled

A vida e o trânsito desordenado de Jacarta, a capital da Indonésia, servem de pano de fundo para 15.000.000 Parachutes (2001). Sucessões consecutivas de imagens do monumento nacional ilustram o drama coletivo da megalópole do Índico, com altíssimas taxas de desemprego. Por entre planos urbanos, num mar de antenas, reflexos dos viadutos nas fachadas espelhadas e lixo amontoado a esmo, dublês de paraquedistas saltam de arranha-céus em construção, e edifícios ermos servem de tocante metáfora para quem é obrigado a recomeçar a cada dia, e sempre novamente, a luta pela sobrevivência cotidiana. Segundo Diaz Morales, “then it’s the illusion the second motor of things” (então a ilusão se torna o segundo motor das coisas).

“Casas, mais casas, rostos diferentes e corações iguais”

The Apocalyptic Man (2002) é baseado em Los Siete Locos (Ed. Rosso, Buenos Aires, 1929), de Roberto Arlt – obra-chave para a compreensão a respeito de como e quando a implantação do frenético tempo mecânico das redações jornalísticas começa a influenciar de maneira marcante a criação literária de todo o mundo. Na obra, signos encontrados em uma obscura viagem interior do artista enigmaticamente vão se materializando em meio a uma procissão do Dia dos Mortos, em uma província da região central mexicana. No ponto máximo de tensão elástica da obra, desaparece a personagem principal, e surge um duplo, que é o resultante do encontro dessa parada religiosa com a loucura santa da pequena cidade. “Indubitavelmente, na vida, os rostos significam pouca coisa”, diz Arlt em Los Siete Locos. Como aparições, fragmentos do livro em lettering entram na projeção, cadenciando, pelas imagens em lento movimento e o áudio misterioso, aquele culto de todos à morte. A respiração ofegante dos apostadores de uma rinha de galos traduz o poder de catarse. A desesperada fuga da realidade de um mochileiro, que corre da própria consciência inimiga, enquanto um efeito sonoro parece criar uma bomba-relógio batendo sem parar no subterrâneo coração da sociedade. Está posta ali a essência do que, em Los Siete Locos, aterroriza o leitor: o “vir a ser” através de um crime. Ao dialogar com a obra de Arlt, Diaz Morales reposiciona a construção do pensamento do escritor no presente, e circunscreve seu próprio trabalho de acordo com a passagem cruzada que se dá através dos tempos.  

O momento e o lugar do bárbaro com o estilingue

O contorno branco, pálido, desmaiado, quase sem forma, define o fundo cinzento da realidade crua. Câmeras de imprensa e cenas impressionantes dos noticiários televisivos internacionais. O poder e suas armas. As imagens iniciais de Lucharemos hasta anular la ley (2005) são desde o princípio vertiginosamente densas; avista-se o vulto de um padre de batina que atravessa o campo da batalha popular, instaurado justo em frente à sede parlamentar do governo federal em Buenos Aires. Um ciclista passa incólume ao tiroteio de pedras e à chuva de xingamentos contra o prédio estatal. As trevas de uma atmosfera medieval instalada em praça pública, bem ali no centro político e nevrálgico da vida argentina em dia de protesto civil. Longe de atrair qualquer noção idealista, a partir de um tom crítico quanto à própria cultura visual midiática que nos cerca por todos os lados, são retrabalhadas em Lucharemos hasta anular la ley imagens canônicas associadas à forte crise econômica e social que incontrolavelmente marcou o país no começo da década. Ao contrastar tal broadcasting já evidentemente imortalizado, Diaz Morales levanta artisticamente a força comunitária contra a violência da política suja da Lei de Estado contra o cidadão e a cidadania.