A trajetória artística de Clarissa Sacchelli (São Paulo, 1983), coreógrafa e artista selecionada para a 1ª Temporada de Dança Videobrasil, revela uma adensada compreensão acerca do corpo e sua relação com as diferentes linguagens artísticas que integram atualmente o léxico da dança contemporânea. Em sua trajetória, Clarissa Sacchelli tem investigado de que maneira os modos de produção afetam diretamente a obra criada.
A partir do embaralhamento entre dança e linguagem escrita, as peças de Sacchelli sugerem, já em seus títulos, um afiado poder de síntese propondo questões a partir de imperativos, como “Este trabalho chamava coreografia” (2016), “Isso não é um espetáculo” (2013-2014), ou “Isso é uma habitação” (2013). No mundo atual, onde o conceito de verdade é algo em trânsito permanente, pesquisas no campo da arte que pretendem definir um conceito de forma imperativa soam ultrapassadas, mas não é isso o que ocorre no caso de Sacchelli. Aquilo que se “chamava coreografia”, o que “é um espetáculo”, ou uma “habitação” são apenas McGuffins que nas mãos da artista detonam o contato entre a ação e o observador.
Nesta edição piloto do projeto Temporada de Dança Videobrasil, nos indagamos como Sacchelli, dançarina, coreógrafa e escritora, se relacionará com o acervo plural do Videobrasil. Mais do que o resultado final que integrará a programação da VERBO 2017 no Galpão VB, e que no caso de Sacchelli poderá se materializar no formato de uma ação, de um texto, ou simplesmente de uma conversa, nos interessa saber como acontecerá a imersão da artista num acervo de mais de 4500 obras, quais serão suas escolhas, impasses, e principalmente, as questões que a partir desse contato a artista estabelecerá com o observador.
Carolina Mendonça e Marcos Gallon, curadores da 1ª Temporada de Dança Videobrasil
Março de 2017
(Não é necessário ler isto antes de ver.)
A partir de um mergulho no Acervo Histórico Videobrasil, selecionei – majoritariamente pela via do magnetismo, poderia dizer – um conjunto de vídeos que foi o ponto de partida para a criação de um novo trabalho. Boas Garotas surge a partir desse recorte e desenvolve-se junto a ele: esses vídeos selecionados atuaram não somente como uma referência conceitual para essa nova criação, mas operaram também como um material bruto constituído de imagens, sons e textos que foram remixados, reinterpretados e/ou reencenados.
Jerk Off 02 - Projeto Dízima Periódica, de Alice Miceli, um dos trabalhos que integram essa playlist, oferece relações com limite, erotismo e pornografia, ao mesmo tempo que propõe um apontamento ou releitura de outra obra artística. Homenagem a George Segal, de Lenora de Barros e Walter Silveira, também aponta para a releitura e para a execução de uma ação íntima, assim como expõe uma relação entre vídeo e performance. Escenarios II, de Maya Watanabe, também traz a ideia de uma performance/acontecimento que se desenrola em um tempo cíclico que é registrado e enquadrado pelo olhar de uma câmera. Rapture (Silent Anthem), de Angelica Mesiti, mais um dos vídeos desse recorte, explora o êxtase e a catarse coletiva por meio de closes e movimentos extremamente lentos. Female Sensibility, de Lynda Benglis, também por meio de closes, investe no erotismo para questionar construções do olhar.
Os movimentos de câmera, os enquadramentos e as formas de edição presentes nos vídeos selecionados informaram diretamente os modos como esse material bruto foi trabalhado, emergindo, a partir desse lugar, uma estreita aproximação entre a ação de editar e coreografar. Muitos dos vídeos desse recorte também apontam para relações com o olhar de quem assiste, o que, por sua vez, sugeriu uma reflexão acerca dos modos de recepção de um vídeo e de uma performance.
Se, por um lado, a investigação das relações entre vídeo e performance e entre trabalho artístico e público indicou alguns caminhos, por outro a exploração do erotismo e da pornografia, bastante presente em alguns dos vídeos, aprofundou o desejo de questionar e excitar a ligação entre ver e ser visto, experimentando transições entre uma lógica ocular e uma lógica do toque.
Boas Garotas aponta para alguns interesses que recorrem minha trajetória e que envolvem a relação entre obra e público e o interesse pela coreografia, que entendo não apenas como escrita de movimento, mas também como uma construção artística e social que pode ser compreendida enquanto um ensaio contínuo, sempre a produzir arquivo e herança. Sigo também interessada na relação entre corpo e palavra: minha língua é e continua um músculo. Boas Garotas, porém, também me vira e aponta meu olhar para o mundo. E o mundo ao meu redor desaba. O Brasil afundado na lama. Mariana já foi esquecida. Não pra menos, nem ao menos conseguimos lembrar que já passamos por uma ditadura que, de tão eficiente, até dela mesma nos fez esquecer. Como imaginar em 1983 que em maio de 2017 sairíamos novamente às ruas reivindicando Diretas Já? Como imaginar o dia em que ouviríamos um secretário de cultura dizer a um integrante de um movimento cultural que iria quebrar a cara dele? As politicas públicas para cultura em São Paulo, já escassas, caminham agora para o desaparecimento. A época é de privatizações. O sentido está privado. Nossos sonhos não podem nos ouvir. Nossas células, de uma hora para outra, podem crescer desordenadamente e nos matar. O limite está dado. Não vamos chegar. Ainda por cima, poder e disciplina. E, por baixo, talvez um tanto de apatia. Sinto hoje, entretanto, uma imensa necessidade de vida. E isso me soa um tanto romântico. Ao mergulhar no Acervo Histórico Videobrasil, entre muitos vídeos, me encontrei com alguns. A relação está com o encontro. Acho que vídeos também podem nos ver. Ou tocar. O que agora me soa bastante ingênuo escrever. Talvez o toque tenha caído em desuso. Mas, oxalá, ainda bem que o presente tem arquivo e produz herança. Arrastar o arquivo para o presente reforça-me a ideia de desvio, me faz questionar temporalidades e normalidades. Este texto não é nenhuma explicação. É uma reflexão sobre o trajeto do meu olho. Relendo a coreógrafa e cineasta Yvonne Rainer, encerro: “Meu corpo permanece a realidade contínua” e “quanto mais uma utopia parece impossível, [talvez] mais ela se torna necessária”.
Não sigo sozinha, agradeço imensamente aos parceiros dessa busca: Cacá, Renan, Luisa e Artur, e também a toda a equipe do Videobrasil e aos curadores da 1ª Temporada de Dança Videobrasil.
Clarissa Sacchelli
Junho de 2017