“A Arca dos Zo’é” no Videobrasil

O curta metragem A Arca dos Zo´é, precedido de O Espírito da TV, frutos de uma parceria com a antropóloga Dominique Gallois, são as pedras fundamentais do projeto Vídeo nas Aldeias. Dominique, que já trabalhava há doze anos com os Wajãpi do Amapá e falava fluentemente a língua, tinha como seu maior informante o cacique e intelectual Wai Wai. Era uma oportunidade única de documentar que aporte o acesso ao audiovisual oferecia aos índios: a possibilidade de uma nova memória, suas reflexões sobre como seriam vistos, qual seria a maneira mais estratégica de se apresentarem.

Em O Espírito da TV, documentamos o périplo de Wai Wai pelas aldeias Wajãpi, apresentando filmes de outros índios, tecendo comentários e analogias com a experiência de contato que eles próprios haviam vivido. Em A Arca dos Zo’é, ao realizar o sonho do  WaiWai de ir documentar aqueles que ele tinha identificado como seus ancestrais nas sessões de cinema na aldeia, fiz o mais rápido e fácil de todos os filmes que realizei: não era uma idéia que vinha da minha cabeça, mas um desejo que WaiWai tinha manifestado. Foi só produzir o encontro, e seguir o WaiWai na sua aventura. Quando terminei o filme, não suspeitava que faria tanto sucesso. Nessa época, eu nem sabia quem era Jean Rouch, nem o que era o “cinema vérité”. A proposta de uma câmera aberta ao feedback dos índios, que assistiam diariamente a tudo o que eu filmava sob sua direção, me levara naturalmente a ele.

Estes filmes circularam por muitos festivais internacionais, onde tomei consciência de que a mídia nativa era um fenômeno emergente em várias regiões no mundo, especialmente naquelas onde as minorias já tinham acesso a universidades e escolas de cinema. Chegara o tempo de passar a câmera aos índios e ensiná-los, sem constrangimento, a ir além do simples registro que faziam. Ensiná-los a contar suas histórias, a então fazer cinema. O resultado das primeiras oficinas foi surpreendente: Wewito Ashaninka fez Shomotsi, “uma pequena obra prima”, nas palavras de Eduardo Coutinho. A Vídeo Carta das Crianças Ikpeng para o mundo encantou crianças de dois a oitenta anos pelo mundo afora. O público se espantava com este novo olhar que trazia a intimidade do mundo indígena.

 Durante dezoito anos avançamos lentamente, com bolsas para artistas de fundações americanas e os parcos recursos da Cooperação Internacional, que já financiava nossa militância política junto aos povos indígenas. Reconhecidos internacionalmente, recebíamos mensagens de várias partes do mundo, de projetos que o Vídeo nas Aldeias havia inspirado, mas não recebíamos nenhum centavo do Brasil. Foi só no advento da era Lula, com a política cultural revolucionária dos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, numa perspectiva de inclusão social e valorização da diversidade cultural brasileira, que o projeto foi descoberto e ganhou um novo impulso com recursos do Cultura Viva. Iniciado em meados dos anos oitenta, com a revolução do VHS, o projeto vivia agora a revolução digital - o que nos possibilitava realizar todas as etapas de produção nas aldeias. Multiplicamos as oficinas e a produção de filmes de autoria indígena, que eram muito bem acolhidos nos festivais de cinema, rompendo o gueto dos festivais etnográficos.

Começava a se consolidar um novo, e aparentemente contraditório, conceito do cineasta indígena. Os índios, taxados pelo senso comum como símbolo do atraso, ostentavam agora o glamoroso status de cineastas. Imaginem o que era a juventude da classe média do Acre, que ainda tinha uma incipiente produção cinematográfica, descobrir que os cineastas indígenas do estado, oriundos daquelas populações pobres e isoladas, já tinham seus filmes premiados em festivais nacionais e internacionais. Isso contribuiu  para uma nova admiração e inserção dos índios. Hoje, obras de artes plásticas e filmes de autoria indígena são exibidos, por exemplo, na Fundação Cartier, em Paris. As dezenas de comunidades que não puderam ser atendidas por nós, principalmente depois do desmonte da política cultural da era Lula, procuraram seus parceiros locais e, em toda parte deste país, tem índio produzindo e filmando.

Novas perspectivas se abrem com as leis que obrigam as escolas públicas a tratar da temática das culturas afro descendentes e indígenas. Fazer chegar os filmes dos novos cineastas, agora em nova escala, é o nosso mais recente desafio para enfrentar o trabalho hercúleo de tirar a riqueza das culturas indígenas da invisibilidade e do ostracismo. Sensibilizar desde cedo as novas gerações, povoar o imaginário brasileiro com a realidade indígena, pois, como bem lembrou recentemente Juca Ferreira, o Brasil sem os índios não é Brasil.

Quando A Arca dos Zo’é, que fora premiado em festivais de documentário em Tokyo, Paris e Nova Iorque, foi selecionado para a 10ª edição do Festival  Videobrasil em 1994, fiquei me sentido um peixe fora d’água diante de vídeos de arte que inovavam na linguagem cinematográfica. Achei a resposta da plateia morna, não era o que aquele público esperava ver ali. Mas o Videobrasil foi ousado ao selecionar o filme em sua mostra competitiva, ao perceber que sua originalidade estava na sua abordagem do tema indígena. Um filme que não falava sobre, mas que dava voz aos índios, um filme em que o índio deixava de ser objeto e passava a ser protagonista da sua história, que não estava a apontar seu exotismo distante, mas sua humanidade tão próxima a nós mesmos.

Embora impossibilitado neste momento de comparecer, por motivos de saúde, à mesa de encerramento da exposição Memórias Inapagáveis, eu não poderia deixar de manifestar a satisfação e o orgulho de ter tido A arca dos Zo´é escolhido entre os dezoito filmes para integrar esta primeira grande exposição curada a partir do acervo do Videobrasil no vasto universo de vídeos nele apresentados e premiados ao longo da trajetória de seu festival. Através destas breves palavras, junto-me a vocês nesta feliz celebração.


Vincent Carelli

Olinda, 27 de novembro de 2014