CONFINAMENTOS
Ao pensar uma curadoria relacionando acervo audiovisual e prisão, muitas foram as perguntas que emergiram. Mas, fundamentalmente, quais são as pontes possíveis de serem interligadas? Como discutir a dimensão do cárcere que, ao passo que também discuta o encarceramento em massa no país, também amplie as noções de confinamento às quais estamos expostos.
A seleção dos vídeos teve como ponto de partida expandir os olhares e possibilidades sobre a prisão. Do ambiente do cárcere, passando pelos manicômios, pelas prisões do consumismo, pela prisão da alienação. Se por um tempo os conflitos ficavam submersos, vivemos um momento em que eles parecem pular diante de nós. Como esses conflitos se dão? Quais as violências que eles hora escondem, hora escancaram? Quais são as tecnologias desenvolvidas para aprisionar corpos, identidades, ideias e, até, sonhos?
Uma coisa é certa: não é possível compreender as dimensões do cárcere sem discutir Política Criminal. De partida, é importante afirmar que a Política Criminal é fruto de processos econômicos, sociais e culturais. Ou seja, uma organização de princípios políticos que selecionará bens e ações que serão tutelados de forma penal e como essa tutela será exercida. Em sendo do âmbito político, significa compreender que há processos de disputa em torno dos caminhos a serem percorridos para a formulação de uma política criminal. Ao Estado violento, e não provedor e impulsionador de direitos, teremos uma política criminal a serviço da desumanização e da manutenção de hierarquias e desigualdades.
A amplitude de uma política criminal pode ser aferida pelas taxas de presos e pelas instituições existentes para atender a essa política, tais como: a magnitude do sistema penitenciário, da própria justiça penal, e até mesmo da polícia que, mesmo não sendo uma instituição vinculada ao sistema de justiça, estabelece relação direta, posto que é a responsável pela “captura da clientela” a qual a justiça criminal irá se debruçar.
Essa magnitude traz consigo diversas implicações. Ao pensarmos o contingente da população prisional, em que o Brasil se insere em 3o lugar no ranking de países que mais encarceram, e nos atentarmos às motivações dessas prisões, algumas perguntas são necessárias para serem feitas: o que e como definir o crime? Quais são as condutas passíveis de serem criminalizadas? E por que determinadas condutas são consideradas crimes e outras não? Atos passíveis de criminalização são como recursos ilimitados, partindo de um conceito funcional e relacional, totalmente aberto e modular. Ao passear pela seleção de vídeos, como pensar nas condutas criminalizadas e nos corpos marcados por essa criminalização? O que configura um sujeito suspeito e outro como cidadão de bem? Por que em algumas sociedades viver a sexualidade que não seja a normatizada é uma conduta criminosa, enquanto que em outras a sexualidade é um exercício absolutamente comum do ser? Por que determinadas substâncias que modificam nossa percepção tanto quanto outras são consideradas lícitas e outras ilícitas? Por que determinados mercados são legais e outros ilegais? Quem lucra com a ilegalidade?
A organização do poder penal contribui para a organização do exercício do poder. E seria ingênuo acreditarmos que a criminalização de determinadas condutas seja algo arbitrário. Assim, o poder penal é formalizado pela seleção de grupos que serão submetidos a coação, imposição de pena, submetidos a marginalização, aprisionamento e exclusão. Esses processos são sustentados pela constituição de imagens de controle desses grupos, ligados a uma gramática da negatividade que imbuirá a sociedade do senso comum que os verá como inimigos penais que precisam ser controlados, reprimidos, isolados e extintos.
O medo que é produzido a partir da mobilização do imaginário em torno dos inimigos penais faz com que o interesse no crime suprima outros temas relevantes. Assim, o combate a criminalidade ganha cada vez mais os holofotes, ao passo que a promoção de direitos perde terreno na arena política. Esse medo alimenta a demanda por medidas cada vez mais severas e punitivas, cada vez por mais controle e exclusão. Assim, a política criminal precisa ser discutida sob o viés da teia de estrutura que o racismo compõe na sociedade brasileira. Quem serão os grupos considerados as classes perigosas?
Sendo o racismo um mito fundacional do Brasil, assim como a violência, a Política Criminal tem um especial papel para a manutenção de desigualdades e na reprodução de hierarquias raciais. E esse é um aspecto trabalhado entre os vídeos curados. Não há como falar em racismo e marginalização da população negra no país sem falar de cárcere. Portanto, não há como discutir outras possibilidades de sociedade sem que desmistifiquemos as prisões, sem que nos questionemos sobre a ineficácia de espaços que, em verdade, servem para precarizar e excluir. É preciso pensar os sistemas punitivos como espelhos da sociedade, porque demonstram, em seus indicadores e funcionamento, qual o tipo de sociedade estamos observando e vivendo. E para que esse questionamento ocorra, precisamos romper os silêncios existentes em torno do cárcere e avançar para as variadas formas de aprisionamento refinadas na contemporaneidade.
Desse modo que os vídeos foram selecionados: buscando demarcar profundamente um questionamento de lógicas punitivas alimentadas pelo racismo. Mas, também, tensionando sobre as variáveis possíveis sobre confinamento. Em tempos pandêmicos, a experiência do confinamento parece mais presente. Mas, estamos mesmo refletindo sobre isso no sentido de alargarmos nossa compreensão de que a nossa prisão espelha a prisão do outro? Ou estamos nos sentindo confortáveis no desconforto da situação, seguindo em frente sem imaginar possibilidades outras, sem buscar reinventar o possível e desafiar o impossível? Na lógica hiperindividualizante do vírus que nos transforma em armas biológicas que podem colocar em risco a nós e aos que mais amamos, quais os confinamentos que estamos aceitando pela empatia – e esses são necessários e passageiros – e quais estamos simplesmente nos acomodando pelas difíceis redes e conexões reflexivas que eles nos impõe e que nos impelem a nos movimentar e modificar o jogo?
Não se trata, portanto, de uma mostra que apresenta respostas, mas que se propõe um ponto de reflexão e inflexão para superarmos fronteiras e muros de verdades relativas, construídas sob interesses alheios aos direitos inalienáveis usurpardos cotidianamente. Uma mostra que nos convida a nos olharmos no espelho, a rompermos silêncios e preconceitos, a superar confortos e a sermos ponto fora do lugar. Afinal, em que prisão você está?
Juliana Borges
Curadora